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Dia da África: Memória, Unidade e os Desafios Contemporâneos da Africanidade Global

Celebrado anualmente em 25 de maio, o Dia da África é uma data de profunda relevância histórica, política e cultural, que ressoa intensamente com os debates críticos e as buscas por conhecimento que incentivamos aqui na Livraria Pandora. Seu significado transcende fronteiras geográficas, servindo como símbolo de resistência anticolonial, de construção identitária e de afirmação das soberanias nacionais do continente africano. Instituído oficialmente em 1963 com a fundação da Organização da Unidade Africana (OUA), hoje União Africana (UA), o dia marca a consolidação dos esforços pan-africanistas por autonomia e autodeterminação frente aos séculos de dominação colonial, escravidão e exploração imperialista.


Neste ensaio, convidamos você a analisar conosco o Dia da África em suas múltiplas dimensões: como marco histórico de união política entre nações africanas, como instrumento de reconstrução das narrativas africanas e afro-diaspóricas, e como ponto de partida para refletir sobre os desafios contemporâneos da África no cenário global. Nosso objetivo é oferecer uma abordagem robusta, descritiva e argumentativa, articulando os marcos históricos com o presente e propondo caminhos para uma africanidade emancipada.


1. O contexto histórico: da fragmentação colonial à unidade africana

A celebração do Dia da África remete à fundação da Organização da Unidade Africana em Adis Abeba, Etiópia, em 1963. Naquele contexto, o continente passava por um processo de descolonização em ritmo acelerado. Após a Segunda Guerra Mundial, movimentos nacionalistas e de libertação cresceram e, entre os anos 1950 e 1970, dezenas de países africanos conquistaram sua independência formal.


Entretanto, a partilha colonial europeia, consolidada na Conferência de Berlim (1884-1885), deixou profundas cicatrizes: fronteiras artificiais, conflitos étnico-religiosos, fragilidade institucional, dependência econômica e apagamento de tradições. A OUA surgiu como um instrumento de articulação política para reconstruir a África com base nos valores da solidariedade e autodeterminação (MAZRUI, 2003).


A organização — sucedida pela União Africana em 2002 — não apenas promoveu a solidariedade continental, como também fortaleceu o ideal pan-africanista, concebido por pensadores como Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, Frantz Fanon, e Cheikh Anta Diop. Para Nkrumah (1963), “a unidade política da África é a única via para a independência real e o progresso econômico do continente”.


2. O significado cultural do Dia da África: reconstrução de memórias e afirmação da africanidade

Mais do que um marco político, o Dia da África é um convite à valorização da cultura africana e à recuperação das epistemologias do sul. É uma resposta ao epistemicídio promovido pela colonização — termo utilizado por Boaventura de Sousa Santos para descrever a destruição sistemática dos saberes não europeus — e à persistente marginalização das histórias africanas nos currículos escolares e nos meios de comunicação.


Celebrar a África significa recontar sua história a partir de seus próprios marcos: as civilizações milenares de Mali, Gana, Kemet (Egito), Axum; os saberes ancestrais dos griots; os sistemas jurídicos tradicionais; os reinos organizados politicamente muito antes da chegada dos colonizadores. Trata-se de uma contra-narrativa à imagem homogênea e estigmatizada que associa o continente unicamente à pobreza e à instabilidade, como denunciado por Walter Rodney em Como a Europa Subdesenvolveu a África.


Essa reconstrução é vital não apenas para os africanos no continente, mas também para as populações afrodescendentes na diáspora. Segundo Kabengele Munanga, “o desconhecimento sobre a história e as culturas africanas contribui para o racismo e para a negação da identidade negra nos países da diáspora africana” (MUNANGA, 2005). No Brasil, por exemplo, o Dia da África é celebrado por movimentos negros, religiões de matriz africana, escolas e universidades como forma de resgate da ancestralidade, da dignidade e do pertencimento.


3. Os desafios contemporâneos da África: soberania, desenvolvimento e justiça global

Apesar dos avanços institucionais e do crescente protagonismo em fóruns internacionais, a África enfrenta sérios desafios. A dependência econômica de mercados externos, a presença de multinacionais extrativistas, os conflitos internos (muitas vezes alimentados por interesses geopolíticos externos), o neocolonialismo financeiro e as mudanças climáticas afetam diretamente o desenvolvimento sustentável do continente, como analisa Achille Mbembe.


A crescente militarização de regiões estratégicas (como o Sahel) e a atuação de potências estrangeiras evidenciam um novo ciclo de disputas por recursos e influência. Além disso, o continente abriga algumas das maiores taxas de deslocamento forçado, especialmente em países como Sudão do Sul, Etiópia, Somália e República Democrática do Congo.


Ainda assim, não se pode reduzir a África a um continente em crise. Muitos países vêm alcançando taxas significativas de crescimento econômico, impulsionando tecnologia, arte e inovação. O Acordo de Livre Comércio Continental Africano (AfCFTA), por exemplo, é uma aposta na integração regional. Como aponta Paul Tiyambe Zeleza, “a nova África está sendo forjada por suas juventudes urbanas, conectadas digitalmente, e por uma nova elite acadêmica e política que reivindica autonomia no plano global” (ZELEZA, 2020).


4. O papel da diáspora africana e a solidariedade internacional

O Dia da África também é um convite à solidariedade entre o continente africano e suas diásporas espalhadas pelo mundo, especialmente nas Américas e no Caribe. A articulação entre movimentos negros, universidades, intelectuais e organizações culturais permite um intercâmbio fundamental de saberes, práticas e resistências.


O conceito de africanidade, conforme proposto por Achille Mbembe (2016), remete a um pertencimento plural, fluido e pós-colonial, que resiste a essencialismos, mas afirma a dignidade dos povos africanos e afrodescendentes. Essa africanidade é política, estética e ética: ela denuncia o racismo estrutural global, celebra as cosmologias negras e projeta um futuro em que o sul global seja produtor de conhecimento e transformação.


Como lembra Lélia Gonzalez, “a cultura negra sempre foi instrumento de resistência e criação de novos mundos possíveis” (GONZALEZ, 1988). É nesse sentido que o Dia da África fortalece o compromisso com um projeto comum de emancipação negra global.


Conclusão: Um Legado Vivo, Um Futuro em Construção

O Dia da África, celebrado em 25 de maio, é mais do que uma efeméride: é uma intersecção simbólica entre passado, presente e futuro. Ao relembrar a fundação da Organização da Unidade Africana, reafirmamos os valores de resistência, unidade e autodeterminação dos povos africanos. Ao celebrarmos suas culturas e saberes, contestamos as narrativas eurocêntricas e reconstruímos a memória histórica de maneira descolonial. E, ao refletirmos sobre seus desafios contemporâneos, renovamos o compromisso com a justiça global e com um projeto civilizatório mais plural, democrático e enraizado na dignidade humana.


A África é, afinal, o berço da humanidade e o coração pulsante de um futuro que precisa ser reinventado com a força de suas raízes.


Convidamos você a refletir conosco sobre a importância deste Dia da África. Quais autores, ideias ou movimentos africanos mais te inspiram ou despertam sua curiosidade? Compartilhe suas perspectivas e sugestões nos comentários abaixo! 


Referências Bibliográficas:

GONZALEZ, L. (1988). A mulher negra na sociedade brasileira. In: Carneiro, S. & Piscitelli, A. (orgs.). Teoria feminista: uma introdução à crítica. São Paulo: Rosa dos Tempos.

MAZRUI, A. A. (2003). Africans: The Heritage of Nationhood. Nairobi: East African Educational Publishers.

MBEMBE, A. (2016). Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições. (Verificar ano da edição brasileira, pode ser 2018)

MUNANGA, K. (2005). Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes.

NKRUMAH, K. (1963). Africa Must Unite. London: Heinemann.

RODNEY, W. (1973). How Europe Underdeveloped Africa. London: Bogle-L’Ouverture Publications.

SANTOS, B. S. (2009). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez.

ZELEZA, P. T. (2020). Africa and the Disruptions of the Twenty-First Century. Nairobi: CODESRIA.

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