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🎭 Do Saci ao Gótico: O que nossos monstros dizem sobre nós

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  1. Entre o redemoinho e a vela: o fantástico como espelho

Na encruzilhada simbólica do 31 de outubro, o Brasil celebra o Dia do Saci, enquanto boa parte do mundo ocidental acende velas e abóboras para o Halloween. À primeira vista, parecem mundos distintos — de um lado, o travesso negrinho de uma perna só que sopra ventanias e confunde viajantes; de outro, fantasmas, vampiros e monstros que rondam as sombras das cidades modernas. Mas há algo em comum entre ambos: tanto o folclore brasileiro quanto o horror gótico nascem do mesmo impulso humano de dar forma ao medo, ao desejo e ao indizível. E é justamente nas figuras do fantástico que uma sociedade revela não apenas seus terrores, mas também suas culpas, desejos reprimidos e, sobretudo, suas resistências.

O fantástico, longe de ser mera fantasia, funciona como a linguagem simbólica daquilo que a razão não dá conta de explicar ou que a moralidade oficial tenta sufocar. É uma tradução poética do inconsciente coletivo, um teatro de sombras onde nossos monstros, travessos ou trágicos, denunciam as contradições que a cultura hegemônica tenta encobrir. Assim, o Saci e o vampiro habitam universos diferentes, mas falam da mesma matéria: o humano em sua forma mais inquieta e conflituosa.

  1. O Saci e o fantástico popular: travessura como resistência

Reduzido por vezes à figura caricata de livros infantis, o Saci-Pererê é muito mais que um personagem de histórias para dormir. Ele é, sobretudo, um símbolo complexo de subversão e resistência cultural. Sua origem, híbrida e plural, condensa as marcas profundas da formação brasileira: o elemento indígena, de onde vêm o espírito da floresta e o domínio do vento; o africano, presente na cor da pele, na esperteza malandra, no cachimbo e na sua própria insubmissão à lógica do feitor; e o europeu, que legou parte do imaginário demoníaco, aqui devidamente reinterpretado. O Saci é, portanto, um produto da mestiçagem simbólica — um ser que desafia toda forma de pureza, identidade fixa ou autoridade imposta.

Enquanto o folclore europeu tradicional costumava representar o sobrenatural como ameaça à ordem, o Saci é o oposto: ele encarna a desordem como potência criadora. Ele não aterroriza; ele desestabiliza. Surge em redemoinhos, quebra a rotina da plantation, esconde objetos, confunde os poderosos e desaparece rindo. Sua força é o riso como arma política, a malandragem como gesto de insubmissão. Ao rir do medo e ridicularizar a autoridade, o Saci descoloniza o fantástico, transformando-o em campo de disputa simbólica.

Como observa a antropóloga Leda Martins, a cultura afro-brasileira funda-se na "performance da reexistência" — o ato de sobreviver criando, reinventando e rindo. O Saci é exatamente isso: o riso que desafia o poder, o vento que sopra contra a rigidez da ordem. Ele é o fantasma do colonialismo, que insiste em lembrar à nação suas raízes negras e indígenas que se recusam a ser domesticadas. O que parece brincadeira é, na verdade, ato político disfarçado de travessura.

  1. O gótico e o horror ocidental: monstros de pedra e sombra

Do outro lado do espelho cultural, o mundo gótico e o horror europeu nasceram da crise da razão e da modernidade. A partir do século XVIII, autores como Horace Walpole, Mary Shelley e Edgar Allan Poe começaram a explorar as ruínas da alma humana, refletindo o medo de um tempo em que a ciência e o progresso prometiam tudo, mas entregavam vazio, alienação e culpa. O castelo em ruínas, o cemitério enevoado e o laboratório de Frankenstein são símbolos de uma civilização que teme sua própria criação e seu passado reprimido.

O gótico, portanto, é a estética do "Unheimlich", o estranho-familiar de Freud: aquilo que foi reprimido (o desejo, o trauma, o passado feudal) e que retorna para assombrar o presente racionalista. Suas criaturas — vampiros, monstros, fantasmas — representam as ansiedades de uma sociedade obcecada pela razão, mas assombrada pela morte e pelo desejo. O vampiro, aristocrata imortal, traduz o medo da degenerescência do sangue, da sexualidade "perversa" e da persistência de um passado que se recusa a morrer; o monstro de Frankenstein, o pavor da ciência sem alma e da alienação do trabalho — a criatura-proletária abandonada por seu criador-burguês; o fantasma, as memórias e culpas que o mundo moderno tenta enterrar sob o concreto.

No fundo, o horror gótico é a consciência culposa do Ocidente. Ele nasce do medo de si mesmo, de sua sombra racional e colonial. Se o Saci é a floresta que ri, o vampiro é o castelo que lamenta. Um nasce do vento e da terra; o outro, da cripta, da herança e do arrependimento. Ambos, contudo, são linguagens de crise — expressões simbólicas de mundos em conflito com o próprio reflexo.

  1. Do sobrenatural ao político: o medo como denúncia

Comparar o Saci e o monstro gótico é mais que um exercício de folclore; é um diálogo sobre diferentes modos de lidar com o medo e o poder. No Brasil, o fantástico popular assume o tom da inversão carnavalesca — ele ri, ironiza, reinventa. No Ocidente, o horror tende à culpa e à melancolia — ele reprime, teme, lamenta. Mas em ambos os casos, o sobrenatural serve ao mesmo propósito: revelar o que a sociedade tenta esconder.

Nossos monstros falam de política. O Saci denuncia o racismo estrutural e o apagamento das culturas originárias; o vampiro denuncia o moralismo e a hipocrisia de uma burguesia que teme sua própria sexualidade; o zumbi moderno escancara o vazio do consumo e a alienação do capitalismo tardio. Cada criatura nasce de um contexto — e, como observa Umberto Eco, "toda época tem o monstro que merece". O fantástico, portanto, é um arquivo do inconsciente histórico, a "volta do reprimido" em escala social. É uma forma de dizer, por metáfora, o que seria inaceitável dizer diretamente.

Hoje, na era das telas, esses universos se encontram. O Saci pode habitar um creepypasta ou um jogo digital; o fantasma pode assombrar um vlog. O imaginário global e o local se misturam, e o fantástico se torna uma linguagem comum da contemporaneidade — um modo de expressar a ansiedade do mundo conectado, desigual e vigilante. Ainda assim, permanece a diferença essencial: enquanto o horror europeu busca expiar culpas, o folclore brasileiro, em sua raiz, busca sobreviver rindo.

  1. O que nossos monstros dizem sobre nós

Celebrar o Dia do Saci e o Halloween não é apenas uma curiosidade cultural — é um ato de leitura de nós mesmos. O Saci e o vampiro, o redemoinho e o castelo, o riso e o lamento: todos são faces de um mesmo espelho, refletindo nossos medos, culpas e esperanças. O fantástico, em qualquer forma, não é fuga da realidade, mas um mergulho radical nela por outra via. Ele permite que a imaginação atue como crítica e que o medo se transforme em metáfora para a ação.

No fim, talvez a diferença entre o Saci e o monstro gótico seja apenas de tom: o primeiro ri da autoridade e a desmancha no vento; o segundo é esmagado por ela ou se torna sua trágica encarnação. O Saci sopra vento de liberdade; o monstro gótico geme sob o peso da culpa. Ambos, no entanto, nos ensinam que a cultura é o modo como o medo se torna linguagem — e que, ao nomear nossos monstros, tornamo-nos menos reféns deles e mais donos de nossa própria história.

Que o 31 de outubro, portanto, não seja apenas um dia de fantasias, mas um convite à reflexão sobre o poder simbólico do fantástico. Porque, no fundo, os monstros que criamos — sejam travessos ou trágicos — são apenas maneiras de nos reconhecermos na escuridão.

“Nossos monstros são os guardiões das verdades que não ousamos dizer.”

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