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"Silvas" invisíveis: entre a celebração da superação e o silêncio sobre a violência estrutural

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O programa da TV Globo Não Era Só Mais um Silva, apresentado por Rene Silva, e a icônica música Rap do Silva (conhecida pelo refrão "Era só mais um Silva"), um clássico do funk originalmente de MC Bob Rum e que ganhou uma nova versão com a participação de Emicida para o programa, constituem duas formas de abordagem da mesma realidade social: a trajetória dos “Silvas”, sobrenome mais comum no Brasil, com profundas conexões simbólicas com a população negra e periférica. Se a música opta por uma denúncia contundente da violência racial e da marginalização, o programa televisivo envereda por uma narrativa de celebração e inspiração. No entanto, essa opção narrativa, embora bem-intencionada, pode incorrer no risco de reforçar, ainda que involuntariamente, um apagamento sistemático da violência de Estado e da desigualdade racial que marcam o cotidiano de grande parte da população negra e periférica brasileira.


Entre o lamento e a superação: disputas de narrativa em torno do "Silva"

A canção Rap do Silva (ou Era só mais um Silva), um clássico do funk de MC Bob Rum, expressa o grito silenciado de milhares de jovens negros brasileiros: um lamento que evoca a morte precoce, a criminalização da cor, a ausência de justiça e a falência do Estado como garantidor da vida. Na versão que dialoga com o programa, ao cantar “minha cor é do centro do alvo”, Emicida, em sua participação, e a mensagem original da canção escancaram a lógica racializada da violência policial, situando a racialidade como critério de vulnerabilidade e de exposição à morte. A própria escolha do sobrenome "Silva" na música é carregada de significado, dada sua vasta disseminação no Brasil, em grande parte, pela sua atribuição a indivíduos escravizados e seus descendentes durante o período colonial.  

Já o programa Não Era Só Mais um Silva propõe inverter essa lógica fatalista. Com o intuito de destacar a potência simbólica do nome “Silva”, a produção procura romper com a ideia de anonimato e invisibilidade , projetando os "Silvas" como protagonistas de histórias de superação, sucesso e resiliência. São apresentados rostos anônimos e famosos que, apesar das adversidades impostas pela origem periférica e pela racialidade, lograram conquistar espaços de reconhecimento social. Mirella Barbosa da Silva, por exemplo, jovem negra de São Gonçalo e a primeira de sua família a ingressar na universidade, representa essa narrativa de vitória que transforma o sobrenome Silva em sinônimo de resistência e conquista.  

Embora louvável, essa proposta precisa ser analisada criticamente à luz de contextos estruturais mais amplos.


Narrativas inspiradoras e o risco da invisibilização sistêmica

A valorização de histórias de superação é fundamental para a afirmação da subjetividade negra e periférica, mas não pode ocorrer em detrimento da denúncia das estruturas de exclusão. O principal risco do programa está na sua ênfase em trajetórias individuais, que pode inadvertidamente reforçar o discurso meritocrático, deslocando a responsabilidade das transformações sociais para o plano individual e ocultando os mecanismos institucionais que perpetuam desigualdades.

Segundo Pierre Bourdieu, a exaltação da meritocracia e da mobilidade social por esforço individual, quando descolada da análise das estruturas sociais, reforça aquilo que ele chama de "violência simbólica". Essa forma de dominação legitima as desigualdades ao apresentar o insucesso como culpa individual, e não como efeito de um sistema desigual. Ao apresentar apenas os "Silvas" que "brilham", o programa pode sugerir que o sucesso é uma questão de mérito individual, obscurecendo as barreiras sistêmicas (como o racismo estrutural e a violência de Estado) que impedem a ascensão de muitos.  

Dados recentes escancaram essa realidade: em 2023, 87,8% das vítimas de letalidade policial no Brasil eram pessoas negras. A violência policial, como bem aponta a Anistia Internacional, não é uma aberração do sistema, mas sim um componente estruturante da atuação do Estado em territórios racializados e empobrecidos. O sociólogo Sérgio Adorno discute como a disseminação da violência na sociedade brasileira reforça as desigualdades sociais e como a violência praticada pelo próprio Estado é uma questão estrutural. Ao optar por uma narrativa positiva,  Não Era Só Mais um Silva corre o risco de suavizar a brutalidade dessa realidade, transformando-a em pano de fundo de histórias de sucesso, sem enfrentá-la de modo crítico.


Racialidade seletiva e visibilidade intermitente

Ainda que o programa afirme tratar de temas como raça, classe e pertencimento , sua abordagem da racialidade parece operar por uma lógica seletiva. O foco recai sobre "Silvas" negros que "brilham", enquanto pouco ou nada se diz sobre aqueles cujas histórias terminam interrompidas pela violência. Casos emblemáticos, como os de João Pedro Mattos Pinto, Luiz Antônio de Souza Ferreira da Silva ou José Luiz Faria da Silva (Maicon), todos assassinados em ações policiais , revelam que a experiência de ser "Silva" nas favelas também é marcada pela dor, pela ausência de justiça e pela exposição constante à violência letal.  

Nesse sentido, o conceito de Racismo Estrutural, amplamente desenvolvido por Silvio Almeida , é essencial para compreender que a racialidade não se resume à cor da pele, mas está inscrita em dinâmicas institucionais que organizam o acesso à vida, à segurança, à dignidade e à própria possibilidade de existir no espaço urbano. Ao não explicitar essas estruturas, o programa contribui para uma espécie de “otimismo seletivo”, que reconhece a dor apenas na medida em que ela pode ser convertida em superação.  


Ausência da crítica estrutural à segurança pública

A violência de Estado nas periferias, especialmente aquela praticada pelas forças de segurança pública, é um fenômeno sistemático e crescente. Entre 2013 e 2023, o número de mortes por intervenção policial aumentou 188,9%. Em muitos municípios brasileiros, a polícia é responsável pela maioria das mortes violentas intencionais. As práticas de "desmonte da cena do crime" e "plantio de provas" , denunciadas por diversas organizações de direitos humanos, são recorrentes e raramente responsabilizadas.  

O sociólogo Luiz Antônio Machado da Silva alerta para o que chama de "vida sob cerco" nas favelas brasileiras, onde o cotidiano é marcado por uma "sociabilidade violenta", produzida não apenas por agentes ilegais, mas também por aqueles que deveriam zelar pela vida. O programa, ao evitar uma crítica explícita ao sistema de segurança pública, reforça uma narrativa de responsabilização individual, obscurecendo o papel do Estado na produção e reprodução da violência urbana.  


Conclusão: representação midiática, inspiração e denúncia

O programa Não Era Só Mais um Silva desempenha um papel importante na valorização simbólica de histórias periféricas, ao conferir visibilidade a trajetórias que desafiam os estigmas. Contudo, é preciso reconhecer os limites dessa abordagem quando ela se descola do debate estrutural. Celebrar a potência de Mirella, Alex Escobar ou Paolla Oliveira é necessário, mas não suficiente.

A contraposição entre a música de MC Bob Rum e Emicida e o programa da TV Globo revela uma tensão profunda na disputa pela representação midiática das favelas: como inspirar sem apagar? Como visibilizar histórias de sucesso sem legitimar um sistema que impede a maioria de sequer sonhar?

É preciso articular a visibilidade das conquistas com a denúncia contundente da violência e da desigualdade. Isso exige não apenas narrativas que encantam, mas também aquelas que incomodam. Só assim será possível honrar plenamente o nome “Silva” – não apenas como símbolo de superação, mas como sujeito coletivo de uma luta contínua por justiça, memória e dignidade.


Bibliografia

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Brasil: Investigações iniciais sobre mortes por ação policial deixam a desejar. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2023/11/07/brazil-inquiry-police-killings-falls-short Corte Interamericana de Direitos Humanos. (2023).  

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Mortes por intervenção policial quase triplicam em 10 anos no país. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-07/mortes-por-intervencao-policial-quase-triplicam-em-10-anos-no-pais Voz das Comunidades. (2025).  

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Luiz Antônio Machado da Silva. Disponível em:(https://scholar.google.com/citations?user=iZhwnvwAAAAJ&hl=pt-BR)

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