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‘Mercedes Sosa: A Voz da Esperança’ é mais tributo do que biografia contaminado pela admiração

da autora Anette Christensen pela biografada, ‘Mercedes Sosa: A Voz da Esperança’ é um tributo problemático a uma cantora genial.

A argentina Mercedes Sosa foi mais que uma cantora. La Negra era uma força da natureza, a união da Cordilheira dos Andes e da Amazônia, a alma dos povos originários da América do Sul. Sua partida, em 2009, deixou um buraco que nunca vai ser tapado. Mais de uma década depois, o Brasil finalmente ganha uma biografia da cantora em português. Mercedes Sosa: A Voz da Esperança (Tribute2Life Publishing, 2021; tradução de Mariana D’Angelo) se assemelha mais a um tributo do que a uma biografia. Se não desmerece o trabalho da dinamarquesa Anette Christensen, diminui o caráter analítico da obra. A favor da escritora, ela deixa clara sua admiração e fascínio por La Negra desde a introdução. Anette não era uma autora antes de A Voz da Esperança. Professora de idiomas e sócia do marido em uma agência de viagens, entrou em contato com a obra de Mercedes ao ver a notícia de sua morte pela TV.

Passando por uma crise financeira e encarando um diagnóstico de Síndrome da Fadiga Crônica, pôs-se a conhecer a fundo a história de uma das maiores vozes da música do século XX. Foi desse contato quase ao acaso que surgiu o interesse de mergulhar para ver a personagem por trás da voz. Ao ser impactada pela potência de Mercedes, decidiu escrever a seu respeito.

Mercedes Sosa: A Voz da Esperança deu a Christensen a possibilidade de aproximação da família da cantora, em especial de seu filho, Fabián Matus, falecido em 2019. Mas à distância, e pela contaminação própria da admiração, a biografia se tornou quase um perfil, com espaço até à ficção.

É de se presumir que a maior parte dos biógrafos decida tecer linhas a respeito de seu objeto por algum nível de proximidade. Paixão, fascínio, admiração ou curiosidade. Contudo, a postura de um biógrafo precisa compreender que, mesmo diante do escrutínio da literatura, a obra é calcada na não-ficção, dentro do campo historiográfico.

Anette não se importa muito com estas barreiras e, sendo justo com a autora, é seu direito. Ao biógrafo dá-se a permissão que determine, também, o ângulo que abordará, quais questões trará à luz, pois o gênero acaba mesmo por transitar entre a verdade e a mentira. As fontes devem ser ouvidas, mas posteriormente checadas. E aqui parece ser o calcanhar de Aquiles do livro. Tudo é muito facilmente aceito como verdade.

Mercedes Sosa beira a santidade. E ainda que a maioria dos relatos que se ouçam caminhem neste sentido, é natural cobrar da autora que buscasse em Mercedes Sosa: A Voz da Esperança o que ainda não sabíamos. Se, como afirma Christensen por mais de uma vez, o livro narra mais sua relação com a carreira de Sosa do que de fato ela pode ter sido, as barreiras ficam um tanto nebulosas e dão espaço a questionamentos sobre cada trecho.

Não é jornalismo literário, por exemplo, é estrutura de ficção. Logo, determinados trechos são fato ou fruto do que dizem ter sido?

Não é jornalismo literário, por exemplo, é estrutura de ficção. Logo, determinados trechos são fato ou fruto do que dizem ter sido? Podemos até encarar que toda biografia causa essas indagações, mas aqui o roteiro por vezes é tão cinematográfico que diminui o impacto do que é lido.

Esse movimento configura o livro como excessivamente chapa branca, condescendente com os comportamentos de La Negra. O medo de manchar a imagem da cantora argentina está impresso em cada linha, que tangencia questões que trariam maior complexidade à personagem – e à biografia.

Sua fé, a relação com a política nos anos de chumbo, seu exílio. Tudo é secundário em A Voz da Esperança, mais interessado em construir uma imagem irretocável da artista, um esforço em vão para alguém que era amada por todos.

Em algum instante, a obra se torna cansativa. É como se estivéssemos diante de um grande verbete na Wikipedia, em que as coisas positivas sobre a biografada determinam sua publicação ou não. Um efeito semelhante ocorreu com Tons de Clô (Bertrand Brasil, 2017), de Carlos Minuano.

Diferente de Anette, Minuano teve dificuldade de se fazer ouvido (e de ouvir), porque os contatos se negavam a conceder-lhe entrevista. A obra acabou vazia, excessivamente didática e semelhante a uma apresentação de PowerPoint. O trabalho sobre Sosa é mais robusto, mas igualmente problemático.

Não se desincentiva a leitura em hipótese alguma, mas acredito que os documentários dirigidos pelo cineasta argentino Rodrigo H. Vila, Mercedes Sosa: Cantora, un viaje íntimo (2009) e Mercedes Sosa: La voz de Latinoamérica (2013), atendam melhor ao propósito, ainda que também em formato de tributo.

MERCEDES SOSA: A VOZ DA ESPERANÇA | Anette Christensen Editora: Tribute2Life Publishing; Tradução: Mariana D’Angelo; Tamanho: 235 págs.; Lançamento: Outubro, 2021.



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