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A escrevivência de Conceição Evaristo: memória, denúncia e poética negra na literatura brasileira contemporânea

Sobre a Autora: Conceição Evaristo (1946) é uma das vozes mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Mineira, de origem humilde, sua trajetória acadêmica e literária é marcada pela força da mulher negra que transforma vivências em palavras potentes. Mestra em Literatura Brasileira e Doutora em Literatura Comparada, sua obra, incluindo romances, contos e poemas, é celebrada por sua qualidade estética e seu profundo compromisso social.


A literatura produzida por autores e autoras indígenas no Brasil contemporâneo representa muito mais do que um fenômeno editorial; é a consolidação de um vibrante e necessário campo de batalha simbólica e política. Em um país fundado sobre a invasão e a contínua expropriação dos povos originários – processos marcados por um silenciamento sistemático e pela imposição de narrativas que os relegavam a um passado romantizado ou a uma alteridade exótica e inferior –, a emergência da escrita indígena atua como um poderoso contradiscurso. Datas como o 19 de abril (Dia dos Povos Indígenas) servem como momentos de visibilidade para lutas incessantes pela demarcação de terras, pela preservação de línguas e culturas e pelo direito fundamental à autodeterminação.


Nesse cenário, a literatura, antes um instrumento predominantemente não-indígena sobre os indígenas, torna-se uma ferramenta dos indígenas para narrar a si mesmos, reivindicar memórias e projetar futuros. Sob um olhar sociológico, essa produção transcende a categoria de "objeto estético" para se afirmar como prática social transformadora, intrinsecamente ligada à desconstrução da racialização – esse processo social, como discute Raewyn Connell (2007), que cria hierarquias baseadas em fenótipos e ascendência, legitimando desigualdades. A literatura indígena enfrenta diretamente essa construção, oferecendo um antídoto vital contra estereótipos desumanizantes e promovendo um entendimento mais complexo e digno da diversidade humana no Brasil.


Ponciá Vicêncio: A herança e a busca

A publicação de Ponciá Vicêncio (2003) inaugura esse projeto literário com força simbólica. A narrativa acompanha a trajetória da personagem-título em sua migração do campo para a cidade, metáfora recorrente da busca por emancipação e identidade. Carregando marcas da escravidão em sua subjetividade e corporalidade, Ponciá é a representação de uma herança histórica não resolvida no Brasil. O romance, de estrutura linear com flashes de memória, propõe uma escrita não apenas de denúncia, mas de reconstrução de uma subjetividade negra desintegrada pelo racismo e pela violência simbólica. A linguagem poética e a carga simbólica conferem à obra um lirismo doloroso, que tematiza o apagamento histórico ao mesmo tempo em que o denuncia.


Becos da Memória: O testemunho coletivo

A autora prossegue esse caminho em Becos da Memória (2006), obra inicialmente escrita nos anos 1980, mas publicada apenas após o sucesso de seu romance de estreia. Aqui, a narrativa se expande para o coletivo: trata-se do testemunho múltiplo de moradores de uma favela em processo de desintegração, ameaçada pelo avanço urbano. A memória individual e coletiva é evocada através da oralidade e da polifonia narrativa. A personagem-narradora, uma mulher negra, funciona como mediadora entre o passado e o presente, entre a fala dos esquecidos e o registro literário. A obra tensiona as fronteiras entre ficção e autobiografia, literatura e testemunho, e apresenta uma estética da fragmentação que expressa a descontinuidade das vidas negras na história oficial do Brasil. A favela não é apenas espaço geográfico, mas também território simbólico de memória, exclusão e resistência.


Olhos d’Água: A poética da Escrevivência Radical

O ápice desse percurso se dá em Olhos d’Água (2014), coletânea de contos que radicaliza a estética da escrevivência. Com narrativas curtas, densas e altamente sugestivas, Evaristo constrói pequenos retratos da vida de mulheres negras, crianças, trabalhadores e pessoas em situação de rua, que são os alvos constantes da violência racial, de gênero e de classe. A economia narrativa não compromete a profundidade psicológica das personagens, e a escolha da primeira pessoa em muitos contos amplia a sensação de intimidade e identificação. O conto que dá título à obra — Olhos d’Água — é paradigmático: nele, a fome é retratada como presença corpórea, corrosiva, mas o olhar da narradora remete a uma ancestralidade de sabedoria e dor. A ancestralidade, aliás, é uma constante nas narrativas de Evaristo: ela recorre aos saberes das mães, avós e ialorixás como estratégias de resistência frente ao mundo excludente.


Estética e Política na Obra de Evaristo Do ponto de vista estético, as três obras dialogam com as tradições da oralidade africana e afro-brasileira, incorporando elementos como o ritmo, a repetição e a circularidade. São também obras que desafiam o cânone literário por integrarem a linguagem poética à crueza dos temas abordados — fome, morte, abandono, racismo institucional, feminicídio, entre outros. A autora realiza, assim, uma reescrita da história brasileira pela via da ficção, inscrevendo a experiência negra como centro da narrativa nacional, e não como nota de rodapé.


Reconhecimento e Impacto A crítica literária tem reconhecido o valor singular da obra de Evaristo, tanto no Brasil quanto no exterior. Seu trabalho é frequentemente incluído em discussões sobre decolonialidade, interseccionalidade e literatura periférica. Além disso, seu protagonismo enquanto intelectual negra tem contribuído para a visibilidade de outras autoras e autores negros, promovendo uma reconfiguração do mercado editorial e da crítica literária brasileira.


Conclusão: Um Ato Político, Poético e Necessário Conceição Evaristo não escreve apenas para emocionar — embora o faça com maestria —, mas sobretudo para inscrever corpos, memórias e experiências que foram historicamente apagadas. Através de Ponciá Vicêncio, Becos da Memória e Olhos d’Água, ela edifica uma obra comprometida com a justiça, a beleza e a complexidade das vidas negras. Em tempos de retrocessos democráticos e recrudescimento do racismo estrutural, sua literatura permanece como ato político, poético e profundamente necessário, apontando para projetos de "bem viver" que ressoam com urgência diante das crises globais e inspiram a construção de um futuro mais justo, equitativo e verdadeiramente intercultural.


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Referências Bibliográficas:

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo1 Horizonte: Mazza Edições, 2003.   1.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2014.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Letramento, 2017.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

GOMES, Nilma Lino. Movimento negro educador. Petrópolis: Vozes, 2017.

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