A Expressão mais cruel do Racismo: um ensaio sobre a Mortalidade Materna de Mulheres Negras no Brasil
- Helbson de Avila
- 31 de ago.
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A mortalidade materna, definida como o óbito de uma mulher durante a gestação ou até 42 dias após o término da gravidez, é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) como um dos indicadores mais sensíveis do nível de desenvolvimento humano, da qualidade da atenção em saúde e do grau de equidade de uma nação. Mais do que um dado biomédico, a morte materna revela os limites de uma sociedade em garantir a vida e a dignidade de suas cidadãs em um dos momentos mais críticos e simbólicos da existência: o de gerar uma nova vida. Estimativas da OMS indicam que 92% desses óbitos poderiam ser evitados com medidas relativamente simples, como acesso oportuno a pré-natal de qualidade, atendimento humanizado no parto e resposta rápida em situações de emergência obstétrica. Quando tais mortes se tornam recorrentes e sistematicamente concentradas em um grupo populacional, não se trata de um acaso, mas de uma denúncia contundente de desigualdades sociais e raciais.
No Brasil, país marcado por profundas contradições democráticas e por uma herança colonial que estrutura relações sociais até hoje, a mortalidade materna se configura como uma tragédia racializada. A morte de uma mulher negra durante a gestação ou no parto não pode ser lida apenas como uma falha do sistema de saúde, mas como a mais cruel expressão do racismo estrutural e institucional. Ela escancara a lógica seletiva da cidadania, em que direitos universais, como o direito à saúde, são distribuídos de maneira desigual.
O Abismo Racial nos números da Mortalidade Materna
Os dados epidemiológicos deixam evidente o que o movimento de mulheres negras denuncia há décadas: o risco de morte materna não é o mesmo para todas. Um levantamento realizado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com base em informações do Ministério da Saúde de 2017 a 2022, aponta que mulheres negras, especialmente as autodeclaradas pretas, morrem em proporção muito maior do que mulheres brancas. Enquanto a Razão de Mortalidade Materna (RMM) para mulheres brancas e pardas foi de 64 óbitos por 100 mil nascidos vivos, para mulheres pretas esse número alcançou 125,8. Dados preliminares de 2022 confirmam a persistência dessa desigualdade: a RMM das mulheres pretas (100,38) foi mais que o dobro da registrada entre mulheres brancas (46,56).
A desigualdade também se revela de forma territorial. No Norte do país, por exemplo, a RMM chegou a 186 óbitos por 100 mil nascidos vivos, número comparável ao de países com baixo Índice de Desenvolvimento Humano , muito distante das metas globais estabelecidas pela Agenda 2030 da ONU. Embora as principais causas clínicas sejam hipertensão, hemorragias e infecções – todas condições preveníveis e tratáveis –, as mortes não são resultado apenas de fatores biológicos, mas da desigualdade de acesso ao pré-natal adequado e ao atendimento emergencial. O que poderia ser um problema de saúde pública é transformado, para as mulheres negras, em uma sentença de morte alimentada pelo racismo institucional.
Racismo Institucional e Obstétrico: A Negação do Direito de Nascer e Parir com Dignidade
O racismo institucional no sistema de saúde não se resume à ausência de recursos. Ele se manifesta na forma como políticas são desenhadas sem considerar especificidades raciais, na negligência de profissionais e na invisibilização das dores e demandas das mulheres negras. Um relatório do Ministério da Saúde revela que pouco mais da metade das gestantes negras realiza o número mínimo recomendado de sete consultas de pré-natal, índice inferior ao das gestantes brancas. A pesquisa "Nascer no Brasil II" reforça esse dado: 13,4% das gestantes pretas e pardas iniciaram o pré-natal apenas no segundo trimestre, contra 9,1% entre as brancas.
Além disso, o fenômeno da “peregrinação” – a busca incessante por diferentes unidades de saúde em busca de atendimento – atinge desproporcionalmente as gestantes negras e pobres, expondo-as a riscos maiores em situações de urgência obstétrica. A violência obstétrica, expressão concreta do racismo, também pesa mais sobre essas mulheres. Desde o estudo pioneiro da Fundação Oswaldo Cruz, em 2002, evidenciou-se que gestantes negras recebiam menos anestesia no parto, reforçando estereótipos racistas sobre maior resistência à dor. O chamado “racismo obstétrico” é definido como um conjunto de violências físicas e psicológicas, que incluem desde a baixa frequência e duração das consultas pré-natais até a negação de tratamento e apoio emergencial a parturientes não brancas. Trata-se de uma violência que compromete a qualidade da assistência e reforça a exclusão racial.
A Luta do Movimento de Mulheres Negras pela Equidade no SUS
A visibilidade da mortalidade materna negra não nasceu das estatísticas oficiais, mas da mobilização histórica do movimento de mulheres negras. Desde os anos 1980, ativistas têm denunciado a desigualdade racial na saúde, pressionando o Estado brasileiro a reconhecer a equidade como princípio fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS).
Em 2001, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Mortalidade Materna apontou a ausência de dados desagregados por raça como obstáculo ao enfrentamento das desigualdades. Essa lacuna foi dramaticamente exposta no caso de Alyne Pimentel, mulher negra de 28 anos que morreu em 2002 por negligência médica no Rio de Janeiro. A condenação do Brasil em 2011 por uma corte internacional foi histórica: pela primeira vez, um país foi responsabilizado pela morte materna evitável como violação de direitos humanos. O caso de Alyne, amplificado por organizações como a Criola, tornou-se símbolo da luta contra o racismo obstétrico e a violência contra mulheres negras.
Apesar de avanços legais, como a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) em 2009 , a implementação de políticas universais como a Rede Cegonha (2011) não conseguiu reverter as desigualdades. Ao não enfrentar explicitamente o fator racial, a política deixou brechas que permitiram a continuidade das iniquidades. Durante a pandemia de COVID-19, essas desigualdades se intensificaram: a queda na proporção de gestantes com pré-natal adequado foi mais que o dobro para mulheres negras (1,44%) em comparação com as brancas (0,54%).
A Rede Alyne: Uma Nova Esperança e Seus Desafios
O lançamento da Rede Alyne, em 2024, marca um esforço inédito de resposta às desigualdades raciais na mortalidade materna. Nomeada em homenagem à vítima símbolo dessa luta, a política estabelece a meta de reduzir em 50% a mortalidade materna de mulheres negras até 2027. Com investimentos significativos: R$ 400 milhões em 2024 e R$ 1 bilhão previsto para 2025. A proposta é integrar atenção primária e especializada, evitando a peregrinação das gestantes e garantindo cuidado contínuo, como foi negado a Alyne.
No entanto, para que a Rede Alyne não repita os erros da Rede Cegonha, será necessário ir além do aporte financeiro. É preciso garantir:
Compromisso político sustentado e articulação intersetorial, por meio do fortalecimento do Comitê Nacional de Prevenção da Mortalidade Materna, Fetal e Infantil, que integra diversos ministérios.
Formação profissional antirracista, incorporando conteúdos sobre equidade e racismo institucional nos currículos da saúde, combatendo o viés inconsciente e o tratamento desumanizado.
Monitoramento rigoroso, com indicadores desagregados por raça, território e classe social, para avaliar o impacto da política de forma contínua.
Participação social ativa, assegurando o protagonismo de organizações da sociedade civil, em especial do movimento de mulheres negras.
Considerações Finais: Mortalidade Materna Negra como Questão de Justiça Racial e Direitos Humanos
A mortalidade materna de mulheres negras no Brasil não é um fenômeno natural, tampouco inevitável. É resultado direto de um sistema de saúde que historicamente marginalizou essa população e da persistência do racismo estrutural na sociedade brasileira. O reconhecimento dessa realidade pelo Estado, expresso no lançamento da Rede Alyne, é um passo importante, mas insuficiente se não for acompanhado de transformações profundas.
Mais do que um indicador de saúde, a mortalidade materna negra é um espelho cruel de como a sociedade brasileira hierarquiza vidas. O direito de nascer e de parir com segurança e dignidade precisa deixar de ser privilégio racial para se tornar realidade universal. Combater essa chaga exige enfrentar o racismo em todas as suas dimensões – estrutural, institucional e interpessoal – e reafirmar, na prática, que a vida das mulheres negras importa.
Referências
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