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O Teto de Vidro da Chuteira: Racismo e Desqualificação na Gestão Esportiva


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1. A Mão que Joga e a Mão que Governa

O futebol brasileiro é, paradoxalmente, um espelho e uma negação da nossa estrutura racial. No brilho do campo, o talento negro ascende, move torcidas e consolida o mito de que o esporte é um espaço meritocrático de superação. No entanto, o cenário se inverte drasticamente fora das quatro linhas, nas salas onde o poder e o dinheiro são decididos. A mesma estrutura que celebra o corpo negro pela sua força e espetáculo, o silencia e o desqualifica como intelecto e gestor.

Essa discrepância é chocante: mais de 60% dos jogadores profissionais se autodeclaram negros ou pardos, mas menos de 5% dos cargos de comando — técnicos, diretores e executivos — são ocupados por pessoas negras (Observatório da Discriminação Racial no Futebol, 2023). Essa disparidade brutal demonstra que o racismo no esporte é mais que ofensas isoladas; ele é estrutural e opera como uma engrenagem. Como explica Silvio Almeida (2019), o racismo é um "conjunto de práticas que produzem desigualdades raciais." Assim, no esporte, ele permite a presença negra no espetáculo, mas barrica o acesso ao poder.

Tese: O racismo no esporte manifesta-se como um mecanismo de desqualificação intelectual, que perpetua a hierarquia racial e impede a plena participação da população negra nos espaços de poder e formulação de políticas esportivas.


2. O Mecanismo da Desqualificação Intelectual

A raiz profunda desse fenômeno reside em uma crença racista, historicamente naturalizada, que associa o corpo negro à força e o corpo branco à razão. No imaginário esportivo, o atleta negro é dotado de "instinto" e "habilidade natural", enquanto o branco é o "estrategista" e o "intelectual do jogo". Essa narrativa, que remonta ao racismo científico do século XIX (Munanga, 2004), constrói o mito da inferioridade intelectual para justificar a exclusão social.

No contexto esportivo, essa ideologia persiste de forma sutil, mas eficaz. A desqualificação se traduz em um verdadeiro epistemicídio (Ribeiro, 2019), a negação sistemática da capacidade de planejamento e gestão negra. Ex-jogadores negros, mesmo com vasto conhecimento de campo, encontram portas fechadas em cursos de formação, são preteridos para comissões técnicas e veem sua experiência ser subestimada. A meritocracia (Carneiro, 2011) é exposta como uma "ficção que ignora a desigualdade estrutural" — uma barreira invisível, mas concreta, que se manifesta em cada ausência.


3. O Racismo nas Cadeias de Comando e Financiamento

A exclusão é sustentada pela própria arquitetura do poder nos clubes e federações. As posições de comando são majoritariamente ocupadas por homens brancos de classes médias e altas, ligados por redes sociais e econômicas que se retroalimentam. Como observou Lélia Gonzalez (1988), o "racismo à brasileira" é cordial, mas implacável: ele se disfarça em costumes e na própria definição enviesada de "competência". Desse modo, o acesso ao poder não se dá primariamente pelo mérito esportivo ou técnico, mas pela herança social e racial.

A ausência negra nas esferas decisórias tem consequências devastadoras nas políticas internas. A gestão majoritariamente branca dos clubes se reflete em políticas omissas diante da violência racial nas arquibancadas. A resposta institucional à injúria racial é frequentemente morna, burocrática e tardia. O caso de Vinícius Júnior, em 2023, reforçou que a indignação pública difere da lentidão das federações. O sociólogo Jessé Souza (2017) aponta que "a elite brasileira construiu sua dominação sobre a naturalização da desigualdade," e o futebol serve como um palco grandioso para essa naturalização. A ausência de executivos negros no comando resulta em protocolos frouxos, investigações superficiais e punições brandas. A tolerância institucional à violência de torcidas é, inegavelmente, um reflexo direto do racismo presente na diretoria. O que não se enfrenta no topo, se repete na base.


4. A Resposta Necessária: Políticas Afirmativas Estruturais

Limitar-se a condenar a injúria racial é apenas medicar o sintoma; é urgente tratar a doença estrutural com políticas afirmativas na gestão esportiva. Silvio Almeida (2020) é categórico: "a igualdade formal, sem transformação estrutural, é um modo de preservar o privilégio sob o disfarce da neutralidade." Clubes e federações não podem mais alegar "igualdade de oportunidades" quando os mecanismos de acesso são racialmente seletivos.

O Estado e as federações devem tomar medidas corajosas. É fundamental estabelecer cotas raciais para cargos de direção, comissões técnicas e conselhos administrativos. A experiência positiva nas universidades públicas brasileiras prova que políticas afirmativas elevam a qualidade institucional e corrigem desigualdades. Além disso, programas de mentoria e capacitação para ex-atletas negros devem ser institucionalizados para garantir que o vasto conhecimento adquirido no campo seja reconhecido e convertido em liderança gerencial. Como defendia Abdias do Nascimento (1989), a verdadeira reparação exige o acesso do negro ao poder de decisão sobre as estruturas que o oprimem. Iniciativas como a vinculação de incentivos fiscais e cotas de patrocínio à diversidade racial e de gênero podem, de fato, transformar a inclusão em um critério estratégico e irreversível, indo além da mera benevolência.


5. Conclusão: Esporte é Justiça

O esporte, que é a maior paixão nacional, precisa ser também um símbolo inegociável de justiça. Combater o racismo no futebol é mais do que uma demanda ética; é um imperativo de gestão, de eficiência e de democracia.

O SIMIR (Sistema de Monitoramento da Igualdade Racial) é fundamental nesse processo, ao fornecer dados e análises que sustentam políticas públicas e mecanismos de acompanhamento da diversidade. A informação técnica desarma a retórica do preconceito. Como afirma Djamila Ribeiro (2020), "a representatividade não é um luxo, mas uma forma de justiça cognitiva e simbólica".

O Brasil deve ao seu povo negro o reconhecimento completo do talento: o físico, o intelectual e o gerencial. O futebol ensinou o mundo a jogar bonito; agora, usando a força dos dados, precisa ser forçado a jogar justo. O esporte só será motor de desenvolvimento quando a cor da decisão refletir, finalmente, a cor do talento que o sustenta.


Referências Bibliográficas

​ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? São Paulo: Pólen, 2020.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2004.

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. São Paulo: Sueli Carneiro/Pólen, 2020.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. São Paulo: Leya, 2017.

OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL. Relatório Anual 2023.

SIMIR – Sistema de Monitoramento da Igualdade Racial. Boletim Técnico 2024.


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