top of page

Quilombismo: um projeto radical para a refundação do Brasil

A identidade brasileira, frequentemente celebrada por sua miscigenação e sincretismo cultural, carrega consigo as marcas profundas de um processo histórico violento e excludente. A narrativa hegemônica de um país tropical e festivo muitas vezes obscurece as estruturas persistentes de racismo e a negação sistemática da centralidade da contribuição africana e afro-brasileira na formação nacional. Nesse cenário de disputas pela memória e pelo futuro, emerge a figura incontornável de Abdias do Nascimento (1914-2011), um intelectual, artista e militante cuja trajetória se confunde com a própria história da luta antirracista no Brasil. Para além da denúncia, Nascimento dedicou sua vida a formular e defender um projeto civilizatório alternativo, uma utopia concreta ancorada na experiência histórica negra: o Quilombismo. Analisar o Quilombismo não é apenas resgatar um conceito, mas compreender uma proposta radical de refundação do Estado e da sociedade brasileira sob a égide da justiça racial e da plena cidadania para a população negra.

Abdias do Nascimento foi uma personalidade polimorfa: ator, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, deputado federal, senador e um dos mais longevos e influentes ativistas do movimento negro brasileiro. Sua atuação transcendeu as fronteiras disciplinares e geográficas. Fundador de instituições seminais como o Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944 – um marco na dramaturgia e na afirmação da identidade negra nos palcos – e idealizador do Museu de Arte Negra (MAN), Nascimento combateu frontalmente o mito da democracia racial, que ele considerava uma sofisticada ferramenta de opressão. Em sua obra seminal, "O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado", ele desnuda as engrenagens do racismo à brasileira, argumentando que a miscigenação compulsória e a assimilação cultural forçada constituíam estratégias de extermínio simbólico e físico da população negra. Como ele mesmo afirmou, o Brasil praticava um "racismo de marca" que visava o "branqueamento" progressivo da população, uma forma insidiosa de genocídio cultural e demográfico.

É neste contexto de crítica radical à ordem vigente que o Quilombismo se cristaliza como proposta política e filosófica. O termo, evidentemente, evoca os quilombos coloniais – espaços de refúgio, resistência e organização autônoma criados por africanos e seus descendentes escravizados que escapavam ao cativeiro. Palmares, sob a liderança de Zumbi, tornou-se o símbolo máximo dessa insurgência. No entanto, Abdias do Nascimento transcende a referência histórica para transformá-la em um paradigma para o presente e o futuro. O Quilombismo, em sua formulação, não é um retorno nostálgico ao passado, mas, como ele define, um movimento político dos negros "visando à construção de um novo Estado, o Estado Nacional Quilombista". Trata-se de um projeto de sociedade fundamentado nos valores da cooperação, da solidariedade, da justiça social e do respeito à diversidade cultural, princípios que, segundo Nascimento, eram inerentes à organização social dos quilombos históricos.

Na prática, o Quilombismo propõe uma reestruturação profunda do Estado brasileiro, que deveria abandonar sua matriz eurocêntrica e reconhecer-se como fundamentalmente afro-brasileiro. Isso implicaria, primeiramente, uma valorização radical da cultura negra em todas as suas manifestações – artes visuais, música, dança, culinária, filosofia e, crucialmente, as religiões de matriz africana como o Candomblé e a Umbanda, constantemente demonizadas e perseguidas. Nascimento via na cultura não apenas uma forma de resistência, mas a própria essência da identidade e da força do povo negro. O TEN, por exemplo, não era apenas um espaço para atores negros, mas um laboratório para forjar uma estética e uma dramaturgia autenticamente afro-brasileiras, rompendo com os padrões europeus. Ele defendia que a cultura negra era patrimônio nacional e deveria ser fomentada e protegida pelo Estado.

Politicamente, o Quilombismo clama pelo protagonismo negro nos espaços de poder e decisão. Não se trata de mera representatividade simbólica, mas da ocupação efetiva de posições estratégicas na política institucional, na academia, na economia e nas instituições culturais. Abdias do Nascimento, através de sua própria atuação parlamentar, buscou traduzir essa demanda em leis e políticas públicas que combatessem a desigualdade racial e promovessem a equidade. Ele entendia que o racismo estrutural só poderia ser desmontado com a participação ativa e dirigente da população negra na redefinição dos rumos do país. Nas suas palavras, era preciso "aquilombar o Brasil", ou seja, reorganizar a nação a partir dos princípios de liberdade, igualdade e justiça social vivenciados nos quilombos.

Outra dimensão fundamental do Quilombismo é sua perspectiva pan-africanista e internacionalista. Abdias do Nascimento estabeleceu diálogos e conexões com intelectuais e movimentos negros das Américas, do Caribe e da África, compreendendo a luta antirracista no Brasil como parte de um movimento global de libertação dos povos africanos e da diáspora. Ele via no Quilombismo um modelo que poderia inspirar outras nações com populações afrodescendentes a construir sociedades mais justas e igualitárias, baseadas em suas próprias matrizes culturais e históricas. A solidariedade transnacional era, para ele, um componente estratégico na luta contra o racismo e o imperialismo. Como ele escreveu em "O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista", a proposta visava um "Estado Nacional multiétnico" onde "as culturas africanas [...] se reencontram e se interpenetram fertilizando um projeto de sociedade verdadeiramente igualitário, livre e soberano".

Hoje, o legado de Abdias do Nascimento e a potência do Quilombismo permanecem intensamente relevantes. As comunidades remanescentes de quilombos continuam sua luta ancestral pela demarcação de seus territórios e pelo reconhecimento de seus direitos, enfrentando a violência do agronegócio, da mineração e do próprio Estado. Mas o Quilombismo, como projeto mais amplo, inspira movimentos sociais, coletivos culturais, intelectuais e artistas que buscam construir alternativas ao modelo de desenvolvimento excludente e à persistência do racismo estrutural. Revisitar o Quilombismo é fundamental para confrontar as narrativas que ainda tentam invisibilizar a centralidade da questão racial no Brasil e para alimentar a imaginação política na busca por um país onde a diversidade seja, de fato, celebrada como potência e não como problema.

Em suma, o Quilombismo de Abdias do Nascimento transcende a mera comemoração histórica para se afirmar como uma filosofia política radical e um projeto de engenharia social. Ele propõe uma ruptura epistemológica com o pensamento colonial e eurocêntrico, oferecendo um caminho para que o Brasil possa, finalmente, reconciliar-se com sua história e construir um futuro onde a matriz africana seja reconhecida como pilar fundamental da nação. É um chamado à ação, à organização e à transformação profunda, ecoando o espírito de resistência e autonomia dos antigos quilombos para forjar um Brasil verdadeiramente justo, plural e democrático para todos os seus cidadãos.


Bibliografia Sugerida:

  1. NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 

  2. NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Palmares; Brasília: OR Editor, 2002. (Originalmente publicado pela Editora Vozes em 1980).

  3. NASCIMENTO, Abdias do; NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Sortilégio da Cor: Identidade, Raça e Gênero no Brasil. São Paulo: Summus Editorial, 2003.

  4. NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). Abdias Nascimento: A Luta na Política (1978-2008). Rio de Janeiro: IPEAFRO, 2009.

  5. NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Poder do Símbolo: O Legado Africano nos Símbolos Adinkra. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). História do Negro no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2004. v. 2.

  6. GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

  7. RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007.

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating

Inscreva seu e-mail para receber atualizações

Obrigado por se inscrever!

Achamos que você possa gostar

bottom of page