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A arte negra como arma de resistência e futuro


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O Agosto Negro, mês de celebração da resistência e da luta contra o racismo, nos convida a reconhecer a arte negra como uma frente de batalha política central. Mais que um mero ornamento estético, a produção cultural negra – da literatura à música, do teatro às artes visuais – é um campo estratégico de disputa. É onde se denunciam opressões, mas, principalmente, onde se criam futuros, se inscrevem memórias e se afirma a humanidade negra em um mundo que historicamente tenta desumanizá-la, negando-lhe voz, espaço e representatividade. Através de suas diversas manifestações, a arte negra rompe com narrativas dominantes e impõe novas perspectivas.


Como afirmou Stuart Hall, a cultura é um terreno de luta por poder e significado. Compreender a arte negra é, portanto, reconhecer seu papel crucial na luta antirracista, atuando como um catalisador para a mudança social e a emancipação.


A palavra como território de poder


A literatura negra talvez seja o exemplo mais claro da palavra como arma. Carolina Maria de Jesus, com seu diário "Quarto de Despejo" (1960), expôs a face oculta de uma sociedade que se dizia racialmente democrática. Ao transformar sua marginalização em matéria literária e política, Carolina não só denunciou a fome e a pobreza nas favelas de São Paulo, como também inaugurou uma tradição de ruptura, dando voz a milhões de brasileiros invisibilizados. Sua obra é um marco na literatura nacional e um testemunho da resiliência.


Décadas depois, Conceição Evaristo recuperou e ampliou essa herança com o conceito de escrevivência. Para ela, a escrita negra não busca agradar, mas "incomodar os da casa-grande em seus sonos injustos." A escrevivência é um ato de insurgência, onde sujeitos negros narram suas próprias histórias, quebrando a invisibilidade e legitimando suas experiências contra a colonialidade do saber, que historicamente silenciou suas vozes e desvalorizou seus conhecimentos.


A arte que transcende a página


A potência da arte negra se expande para outros campos, provando sua versatilidade e impacto. O samba, criminalizado em suas origens, tornou-se um símbolo de afirmação coletiva e de resistência cultural, celebrando a identidade afro-brasileira. O rap e o funk ecoam a voz das periferias, denunciando a violência policial, o racismo e a desigualdade, e servindo como plataformas para a conscientização e a mobilização social. Emicida resume essa força: "A periferia não é silêncio, a periferia é um grito coletivo," um grito que exige justiça e reconhecimento.


No teatro, o trabalho de Abdias do Nascimento com o Teatro Experimental do Negro (1944) foi uma virada histórica. Ele combatia os estereótipos racistas e reivindicava uma dramaturgia que expressasse a experiência e a dignidade negra, resgatando a autoestima e a representação positiva. Como Abdias dizia, a cultura é um "instrumento de libertação ou de opressão, nunca neutra," sublinhando seu poder transformador.


Nas artes visuais, artistas como Rosana Paulino e Arjan Martins confrontam a invisibilização do trauma e da memória negra. Paulino, em seu trabalho de costuras e cicatrizes, busca "intervir sobre o apagamento histórico que recai sobre as mulheres negras", reescrevendo a história da diáspora africana com imagens impactantes que provocam reflexão e cura. Suas obras são pontes entre o passado e o presente, desafiando a amnésia histórica.


Arte como "reexistência"


A arte negra não apenas resiste, ela reexiste. Se resistir é responder a um ataque, reexistir é afirmar a vida, a complexidade e o afeto em meio à violência estrutural. A noção de reexistência, presente nos debates decoloniais, sugere que a criação cultural negra é um ato de invenção do possível, uma construção de mundos novos e mais justos. É uma forma de autoafirmação e de celebração da existência.


Como aponta Achille Mbembe, a imaginação é uma forma de resistência. O batuque, a dança, a poesia e o grafite rompem com a lógica que tenta reduzir corpos negros à ausência ou à morte, e os elevam a símbolos de vitalidade e persistência. Cada obra é um gesto de reconstrução coletiva, carregando em si uma dimensão de futuro e utopia, onde a negritude é celebrada em sua totalidade.


Um convite à ação


Consumir e apoiar artistas e escritores negros não é uma escolha estética, mas um ato político fundamental que impulsiona a transformação social. A crítica, o mercado editorial e as instituições culturais têm a responsabilidade de romper o ciclo de invisibilização, promovendo a diversidade e a inclusão. Como bell hooks insiste, "a cultura pode ser um lugar de luta radical onde novas visões são possíveis," e onde a justiça social pode ser alcançada.


Encerrar o Agosto Negro não significa encerrar o debate, mas intensificá-lo. É um convite para continuar a luta, buscando obras de Miriam Alves, Ana Maria Gonçalves, Djamila Ribeiro e outros talentos negros, e abrindo novos espaços para narrativas negras em todas as áreas, desde a academia até a mídia e o entretenimento.


No fim das contas, cada poema, cada batida e cada performance é mais que palavra: é uma arma, um escudo e um horizonte na construção de uma sociedade verdadeiramente plural e justa, onde a arte negra ocupa seu mer

ecido lugar de destaque e poder.


Referências


Evaristo, Conceição. Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

hooks, bell. Black Looks: Race and Representation. Boston: South End Press, 1992.

Mbembe, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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