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Ler o mundo, escrever a liberdade: O Legado de Paulo Freire no dia da Alfabetização

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O Dia Internacional da Alfabetização, celebrado em 8 de setembro, não é apenas um marco técnico ou estatístico, ligado à capacidade de decodificar letras e palavras. Para além dos índices educacionais, a data nos convoca a uma reflexão mais profunda sobre o sentido histórico, político e emancipador da alfabetização. É nesse horizonte que o pensamento de Paulo Freire se mostra insubstituível, pois ele nos recorda que alfabetizar não é somente ensinar a ler textos, mas, sobretudo, ensinar a ler o mundo.

Em sua obra fundamental Pedagogia do Oprimido, Freire rompe com a concepção bancária de educação — na qual o educador deposita conteúdos nos alunos — e inaugura uma pedagogia dialógica, em que a alfabetização é um ato de libertação. Ele afirma que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 79). O processo não é neutro, como sugerem as abordagens tradicionais que o reduzem a um treinamento mecânico. Aprender a ler e a escrever significa conquistar uma ferramenta para interpretar a realidade, questionar as estruturas de dominação e participar ativamente da transformação social.

No célebre A importância do ato de ler, Freire é ainda mais contundente: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1989, p. 11). Alfabetizar não é, portanto, apenas decifrar signos gráficos, mas compreender as relações sociais, políticas e culturais que estruturam a vida coletiva.


Alfabetização, Independência e Racismo Estrutural

Se a alfabetização é um ato político, ela não pode estar dissociada da luta contra o racismo estrutural. No Brasil, a exclusão do acesso à leitura e à escrita foi historicamente usada como mecanismo de manutenção da desigualdade racial. Durante a escravidão, negar aos negros o direito de aprender era uma forma de impedir sua organização política e sua afirmação como sujeitos de direitos. A herança dessa violência persiste hoje nos índices educacionais: a taxa de analfabetismo funcional e a precariedade do ensino recaem majoritariamente sobre a população negra e periférica.

Como lembra Freire, “não há neutralidade na educação” (FREIRE, 1996, p. 122). O ato de alfabetizar pode tanto reforçar a exclusão quanto combatê-la. Inspirada em seu legado, a alfabetização crítica exige reconhecer que a desigualdade racial não é uma falha ocasional, mas parte constitutiva de um projeto histórico que precisa ser desfeito. Assim, a alfabetização crítica é, em sua essência, uma prática antirracista.


Ler o Mundo a partir da Negritude

O projeto freireano de alfabetização crítica encontra ressonância em intelectuais negros como Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento. Gonzalez (1988) insiste que o racismo é estruturante da cultura brasileira e que alfabetizar sem considerar essa dimensão é perpetuar a ideologia da democracia racial. Abdias, por sua vez, advertia que um país alfabetizado, mas sem consciência crítica, continuaria submetido a formas sofisticadas de colonização cultural (O genocídio do negro brasileiro, 1978).

Nessa perspectiva, a leitura do mundo envolve, necessariamente, o reconhecimento da história da população negra, de sua resistência e de seu papel na formação da sociedade. Alfabetizar criticamente é resgatar vozes silenciadas pela historiografia oficial e possibilitar que crianças negras, ao aprenderem a ler, reconheçam seus ancestrais como produtores de conhecimento e cultura.


Lutas Contemporâneas: Políticas Públicas e Educação Antirracista

O Brasil contemporâneo ainda enfrenta enormes desafios no campo da alfabetização. Segundo dados do IBGE/PNAD Contínua (2023), cerca de 9,6 milhões de brasileiros com mais de 15 anos permanecem analfabetos — a maioria concentrada nas regiões Norte e Nordeste, e predominantemente entre pessoas negras e pobres. Essa realidade reafirma que a luta pela alfabetização é inseparável da luta contra as desigualdades sociais e raciais.

Nos últimos anos, políticas públicas como o PNAIC, o PNLD e o FUNDEB têm buscado ampliar o acesso à educação. No entanto, como alertam o movimento negro e pesquisadores da educação crítica, essas políticas precisam ir além de metas técnicas: devem ser atravessadas por uma perspectiva antirracista, que reconheça as diferenças étnico-raciais e combata a reprodução de preconceitos nos currículos e materiais didáticos.

O movimento negro contemporâneo, ao lado de entidades como a Coalizão Negra por Direitos e intelectuais como Nilma Lino Gomes e Kabengele Munanga, defende que alfabetizar é também politizar contra o racismo. Isso significa incluir nas práticas pedagógicas conteúdos que contemplem a história e a cultura afro-brasileira e africana (como previsto na Lei 10.639/2003), formar professores para lidar com a diversidade e criar condições para que crianças negras se vejam representadas positivamente no processo educativo.

A alfabetização, nesse sentido, não pode ser reduzida a um instrumento de inclusão formal no sistema escolar. Ela deve ser concebida como um direito humano e um projeto de emancipação coletiva. Ao incorporar o legado freireano, o Brasil precisa afirmar que alfabetizar é libertar — e libertar, no contexto de nossa história, significa também descolonizar e antirracializar o ensino.


Alfabetização como Ato de Esperança e Justiça

A alfabetização, à luz de Paulo Freire, é inseparável da luta por dignidade, igualdade e democracia. Alfabetizar criticamente significa resistir à lógica da dominação, criando condições para que os sujeitos historicamente silenciados — sobretudo os negros e pobres — se tornem vozes ativas na construção do futuro. É, em última instância, um ato de esperança e de fé no ser humano. Como o educador pernambucano sintetiza: “A esperança é um imperativo existencial” (FREIRE, 1996, p. 70).

Ao celebrarmos o Dia da Alfabetização, não podemos reduzi-lo a uma data simbólica. É preciso encará-lo como um compromisso ético com a liberdade e com a reparação histórica. A alfabetização crítica é o alicerce de uma sociedade verdadeiramente democrática, na qual a independência não se mede apenas pela autonomia política do passado, mas pela autonomia crítica e emancipatória dos cidadãos no presente. Ler o mundo e escrever a liberdade são, assim, os dois movimentos complementares de uma mesma caminhada: a construção de um povo capaz de transformar sua história em nome da justiça social e racial.


Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23. ed. São Paulo: Cortez, 1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro, n. 92/93, 1988.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília: MEC/UNESCO, 2005.

IBGE. PNAD Contínua: Educação 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

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