Revolução dos Cravos e a luta pela Independência na África Lusófona: um olhar sobre as Racialidades, Lideranças, Descolonização e Legados Históricos
- Helbson de Avila
- 25 de abr.
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A Revolução dos Cravos, evento sísmico ocorrido em Portugal em 25 de abril de 1974, não apenas desmantelou o longevo regime autoritário do Estado Novo, mas também atuou como catalisador decisivo para o fim de um império colonial onde as dinâmicas raciais eram estruturantes. O golpe militar pacífico, orquestrado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), removeu do poder uma ditadura que, por décadas, negou a autodeterminação dos povos africanos, mantendo uma ordem social e política rigidamente hierarquizada pela raça. Como aponta Norrie MacQueen, “a lógica da permanência colonial tornou-se insustentável após o colapso do regime, uma vez que este era o principal fiador ideológico e militar da política imperial portuguesa” (MacQueen, 1997, p. 86). Essa política imperial, sustentada por ideologias como o lusotropicalismo – que, paradoxalmente, celebrava uma suposta miscigenação enquanto mascarava profundas desigualdades e discriminações raciais – via os territórios africanos como extensões ultramarinas de uma nação pluricontinental, negando a identidade e os direitos dos povos colonizados.
As lutas de libertação que floresceram em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe desde o início da década de 1960 eram, em sua essência, confrontos diretos contra essa estrutura de dominação racial e exploração. Os movimentos revolucionários não apenas visavam à emancipação política, mas também à reafirmação das identidades africanas e à construção de sociedades onde a raça não fosse um fator de opressão. Com a queda da ditadura, a nova liderança portuguesa reconheceu a irreversibilidade desses movimentos, iniciando negociações que culminaram nas rápidas transferências de soberania entre 1974 e 1975.
Angola: Racialidades em conflito e a Guerra Civil
Em Angola, a herança colonial de estratificação racial e étnica complexa exacerbou as tensões entre os movimentos de libertação. A independência, em 11 de novembro de 1975, foi seguida por uma guerra civil brutal, onde as clivagens políticas frequentemente se alinharam com diferentes bases de apoio étnico-raciais e regionais, complicadas pela intervenção de potências externas com seus próprios interesses.
Agostinho Neto, líder do MPLA, representava um movimento com forte apoio em áreas urbanas e entre a população Kimbundu, além de contar com a adesão de muitos mestiços e alguns brancos anticolonialistas. Médico e poeta negro, Neto articulou a luta pela independência com a busca por libertação social, afirmando que “a libertação nacional é inseparável da libertação social” (Neto, 1979), o que implicitamente incluía a superação das desigualdades raciais impostas pelo colonialismo. Seu governo, no entanto, enfrentou o desafio de unificar um país fraturado, e as acusações de perseguição a dissidentes também tocaram em questões de identidade e pertencimento.
Jonas Savimbi, da UNITA, construiu sua base de apoio predominantemente entre os Ovimbundu, o maior grupo etnolinguístico de Angola. A trajetória de Savimbi e da UNITA, especialmente durante a guerra civil contra o MPLA, esteve frequentemente entrelaçada com dinâmicas étnicas e regionais, que, em um contexto pós-colonial, muitas vezes se traduziram em tensões com conotações raciais, especialmente na disputa por poder e recursos. Tony Hodges observa que “Savimbi personificou o prolongamento da guerra e o colapso do diálogo político em Angola” (Hodges, 2004, p. 102), um conflito onde as identidades raciais e étnicas foram habilmente manipuladas e exploradas pelos diferentes lados e seus apoiadores externos.
Holden Roberto, à frente da FNLA, concentrou seu apoio principalmente entre os Bakongo no norte, área que historicamente manteve laços mais estreitos com o Congo. A FNLA, embora tenha sido um dos primeiros movimentos a iniciar a luta armada, viu sua influência diminuir drasticamente após a independência, em parte devido à sua base de apoio mais restrita e às alianças geopolíticas da Guerra Fria.
Moçambique: A luta contra o Racismo e a construção da Nação Socialista
Em Moçambique, a FRELIMO emergiu como o principal e, para muitos, o único representante legítimo da luta pela independência contra um sistema colonial onde a exploração do trabalho africano e a segregação racial eram patentes. A FRELIMO, sob a liderança de Samora Machel, buscou ativamente construir uma identidade nacional moçambicana que transcendesse as divisões étnicas e raciais herdadas do colonialismo. Machel enfatizava que “a independência não é o fim, mas o início de uma nova luta — a luta pela transformação da sociedade” (Machel, 1977, p. 14), e essa transformação incluía explicitamente o combate ao racismo e à discriminação.
Apesar dos esforços da FRELIMO para promover a igualdade racial e étnica, o país mergulhou em uma guerra civil contra a RENAMO. É crucial notar que a RENAMO foi significativamente apoiada e, em grande medida, criada por regimes minoritários brancos da Rodésia e da África do Sul, que viam o governo da FRELIMO como uma ameaça direta à sua própria estrutura de poder baseada na segregação racial do apartheid. Essa ligação ressalta como as racialidades continuaram a desempenhar um papel central nos conflitos pós-coloniais na região.
Guiné-Bissau e Cabo Verde: A força da Cultura e a Unidade Dissolvida
A luta pela independência na Guiné-Bissau e Cabo Verde, liderada pelo PAIGC, destacou-se pela profundidade da análise de seu líder maior, Amílcar Cabral, sobre a importância da cultura e da identidade na luta anticolonial. Cabral, ele próprio de origem cabo-verdiana e profundamente consciente das complexidades raciais e sociais dentro do império português, argumentava que “ninguém pode libertar-se se não se libertar culturalmente” (Cabral, 1975, p. 50). Para Cabral, a descolonização das mentes dos africanos, a superação da internalização das hierarquias raciais coloniais e a valorização das culturas africanas eram tão vitais quanto a luta armada.
O PAIGC uniu pessoas de diferentes grupos étnicos da Guiné-Bissau e da população de Cabo Verde sob um projeto comum de libertação. No entanto, após o assassinato de Cabral e a independência dos dois países, a unidade do PAIGC fragmentou-se, culminando em um golpe de Estado na Guiné-Bissau em 1980 que depôs o Presidente Luís Cabral (cabo-verdiano) e acentuou as diferenças entre as duas nações, por vezes explorando ressentimentos e percepções baseadas em origens geográficas e, implicitamente, em diferentes posições na estratificação colonial.
Aristides Pereira, que assumiu a presidência em Cabo Verde, liderou o país por um caminho relativamente mais estável. As dinâmicas raciais em Cabo Verde, com sua população majoritariamente crioula, diferiam das da Guiné-Bissau continental, e o processo pós-independência refletiu essas particularidades, embora a herança do colonialismo e suas implicações sociais e econômicas permanecessem presentes.
São Tomé e Príncipe: a superação da Economia de Plantação e as Racialidades
São Tomé e Príncipe, uma colônia cuja economia se baseava na exploração brutal do trabalho nas plantações de cacau e café (roças), com uma estrutura social profundamente marcada pela raça e classe, alcançou a independência de forma relativamente pacífica em 12 de julho de 1975, sob a liderança do MLSTP.
Manuel Pinto da Costa, o primeiro presidente, enfrentou o desafio de transformar uma economia e uma sociedade moldadas pela exploração racializada colonial. A nacionalização das roças foi uma tentativa de desmantelar a antiga estrutura de poder e propriedade, que beneficiava desproporcionalmente os colonos brancos e uma elite mestiça ligada a eles, em detrimento da grande massa de trabalhadores rurais negros, muitos deles de origem angolana ou moçambicana. A historiadora Inês Nascimento Rodrigues destaca que “o caso são-tomense ilustra uma das transições mais pacíficas do império português para a independência africana” (Rodrigues, 2015, p. 212), mas essa paz não significou a ausência de desafios na superação das desigualdades e das dinâmicas raciais herdadas.
Conclusão: Legados da Luta Anticolonial e os Desafios Contínuos
A Revolução dos Cravos foi, sem dúvida, o momento que precipitou o fim formal do império português e permitiu que os povos africanos lusófonos conquistassem a soberania política pela qual lutaram. Contudo, a independência não apagou instantaneamente os legados de séculos de dominação colonial e racial. Como lembra Achille Mbembe, “a soberania pós-colonial foi muitas vezes consumida por conflitos herdados, pela dependência econômica e pela dificuldade de reinvenção do Estado” (Mbembe, 2000, p. 42). Muitos desses conflitos e dificuldades estiveram, e ainda estão, intrinsecamente ligados às dinâmicas raciais e étnicas moldadas e, por vezes, exacerbadas pelo poder colonial.
As independências na África Lusófona são, portanto, marcos cruciais na luta contra o colonialismo e o racismo estrutural, mas também representam o início de complexos processos de construção nacional onde as racialidades continuam a ser um fator relevante nas esferas social, política e econômica. O legado dos líderes da independência reside na conquista da autodeterminação e nos esforços para construir sociedades mais justas e igualitárias, mesmo diante dos enormes desafios impostos pela história colonial e pelas realidades geopolíticas do pós-Guerra Fria.
Referências Bibliográficas
Cabral, A. (1975). Unity and Struggle: Speeches and Writings of Amílcar Cabral. Monthly Review Press.
Hodges, T. (2004). Angola: From Afro-Stalinism to Petro-Diamond Capitalism. Indiana University Press.
MacQueen, N. (1997). The Decolonization of Portuguese Africa: Metropolitan Revolution and the Dissolution of 1 Empire. Longman.
Machel, S. (1977). A Luta Continua: Speeches by Samora Machel. Zed Press.
Mbembe, A. (2000). On the Postcolony. University of California Press.
Neto, A. (1979). Sagrada Esperança. Instituto Nacional do Livro e do Disco de Angola.
Rodrigues, I. N. (2015). Descolonização e Memórias: Os Finais do Império Português. Almedina.



















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