Uma Língua, muitos mundos: A riqueza da Literatura em Português neste 5 de Maio
- Helbson de Avila
- 5 de mai.
- 4 min de leitura

Neste dia 5 de maio, celebramos o Dia Mundial da Língua Portuguesa, data instituída pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e reconhecida pela UNESCO. Homenageamos não apenas um idioma formalmente partilhado, mas um patrimônio cultural imaterial vivo, plural e em constante transformação. Mais do que um instrumento de comunicação, a língua portuguesa é um território simbólico complexo; ao longo de séculos, essa língua cruzou oceanos, redesenhou mapas, foi instrumento de um império e de seus embates, mas também se tornou ferramenta de resistência, apropriação e expressão para os povos que hoje a habitam em suas múltiplas variantes, sotaques, léxicos e formas de ser e estar no mundo.
A língua portuguesa é falada por mais de 260 milhões de pessoas em todos os continentes, sendo língua oficial em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, além 1 de ter presença em Macau e outros espaços. Essa presença global não anula sua heterogeneidade interna, mas a reforça. Como bem expressa o linguista Marcos Bagno (2007), “não existe uma única língua portuguesa, mas muitas línguas sob o mesmo nome”. Cada território inscreve na língua seus traços próprios, marcas de resistência ao apagamento colonial, recriações poéticas e políticas. A pluralidade é, portanto, constitutiva da própria língua.
Nesse contexto, a literatura surge como um espaço privilegiado para dar corpo e voz a essa diversidade. Por meio da escrita literária, os mundos em português se mostram múltiplos, contraditórios, densos de memórias e projeções. A literatura não apenas espelha a língua falada nos diversos contextos socioculturais, mas também a transforma, subverte e reencanta. Ela é campo de invenção e de crítica, de denúncia e de imaginação. Como afirma Conceição Evaristo, “nossa escrevivência não se dá fora da vida, mas é nela que a gente escreve o mundo” (EVARISTO, 2013). A linguagem, nesse sentido, é também um ato de resistência e afirmação identitária frente aos legados de opressão.
No Brasil, essa potência é visível na obra de autoras como Conceição Evaristo, cuja escrita, marcada por uma poética da dor e da memória, dá visibilidade à experiência da mulher negra periférica. Em Ponciá Vicêncio, a linguagem se torna veículo de uma subjetividade silenciada. Carolina Maria de Jesus, por sua vez, em Quarto de Despejo, introduz a voz da favela na literatura brasileira, desafiando tanto o cânone quanto as hierarquias da língua. Itamar Vieira Jr., em Torto Arado, alia denúncia social e ancestralidade, colocando a oralidade e os dilemas raciais no centro da narrativa.
Em Angola, a literatura é profundamente marcada pela experiência colonial e pela luta de libertação. Agostinho Neto, poeta e primeiro presidente, sintetiza em sua poesia o engajamento político: “não temos nada a perder / senão a vida / e a vida sem liberdade / nada vale”. Pepetela, em obras como Mayombe, cria personagens complexos no processo revolucionário. Ondjaki, com sua escrita híbrida e lírica, como em Os Transparentes, mistura realismo e fabulação para narrar a Angola pós-guerra.
Em Moçambique, o cruzamento cultural, a guerra e a reconstrução são temas recorrentes. Mia Couto se destaca por sua linguagem inventiva em obras como Terra Sonâmbula. Paulina Chiziane, primeira romancista do país, questiona papéis de gênero e tradições em livros como Niketche: Uma História de Poligamia. José Craveirinha, grande poeta da liberdade, fez da palavra um instrumento de denúncia e sonho.
Cabo Verde, arquipélago da diáspora e da música, expressa sua identidade mestiça. Germano Almeida, em O Testamento do Sr. Napumoceno, combina humor e crítica social. Orlanda Amarílis, voz feminina pioneira, explora os desafios da emigração em obras como Cais-do-Sodré té Salamansa.
Portugal, embora origem histórica, hoje dialoga neste espaço policêntrico. José Saramago, Nobel de Literatura, desafiou convenções formais e políticas em obras como Ensaio sobre a Cegueira. Sophia de Mello Breyner, com sua poesia ética, conjugou o mar e a liberdade. Valter Hugo Mãe, voz contemporânea, experimenta com a linguagem para dizer o mundo de outras formas.
Essa pluralidade se estende ainda à Guiné-Bissau, onde a reflexão de Amílcar Cabral sobre cultura e libertação deixou marcas profundas também na literatura; a São Tomé e Príncipe, com sua literatura insular explorando os legados da plantation; e ao Timor-Leste, que também constrói sua expressão literária em português, muitas vezes marcada pela experiência da ocupação e resistência.
Esses autores e autoras nos mostram que ler a literatura da lusofonia é entrar em contato com muitos mundos que falam a mesma língua de formas diversas. É entender que o português é um idioma habitado por lutas, memórias, afetos, opressões e resistências. É ampliar horizontes, deslocar perspectivas, repensar fronteiras. Em tempos de homogeneização cultural, a literatura em português nos oferece um caleidoscópio de realidades que se entrelaçam sem se apagar.
Neste 5 de maio, celebrar a língua portuguesa é reconhecer a pluralidade de seus falantes e criadores. É fazer da leitura um ato de escuta e de encontro. É afirmar que, como disse Mia Couto, “as línguas só têm sentido se servirem para aproximar as pessoas, não para afastá-las”. Ler autores e autoras de toda a lusofonia é, portanto, uma forma de tecer pontes entre nossos muitos mundos.
Referências Bibliográficas (Formato ABNT)
ALMEIDA, Germano. O Testamento do Sr. Napumoceno. Lisboa: Caminho, 1989.
AMARÍLIS, Orlanda. Cais-do-Sodré té Salamansa. Lisboa: INCM, 1974.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poesia e realidade. Lisboa: Ática, 1967.
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. Lisboa: Caminho, 2000.
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminho, 1992.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2013.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
MÃE, Valter Hugo. o remorso de baltazar serapião. Lisboa: Quetzal, 2006.
NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. Lisboa: Sá da Costa, 1974.
ONDJAKI. Os transparentes. Lisboa: Dom Quixote, 2012.
PEPETELA. Mayombe. Lisboa: Dom Quixote, 1980.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.
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