Cultura e Ciência: Territórios de disputa e ferramentas de reexistência
- Helbson de Avila
- há 2 dias
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"Toda cultura é, primeiramente, uma forma de intervir no mundo." - Fanon
Celebrar o Dia Nacional da Cultura e da Ciência, neste 5 de novembro, é mais do que um gesto simbólico. É um convite à reflexão radical sobre o sentido profundo dessas palavras em um país que ainda luta para reconhecer a pluralidade de suas vozes e saberes. À primeira vista, o imaginário coletivo pode associar a data a museus, teatros, universidades e laboratórios — os espaços onde o "conhecimento" e a "criação" parecem habitar.
Mas, se olharmos de forma crítica, veremos que cultura e ciência não se limitam a instituições; elas são a própria expressão e o motor do poder. Ambas são territórios epistemológicos: campos de batalha onde se define não apenas o que sabemos, mas quem tem o direito de saber e qual saber é considerado legítimo.
A Cultura como braço Estético da hegemonia
A cultura, longe de ser um campo neutro, sempre foi o território por excelência do conflito simbólico e político. Como apontaram Theodor Adorno e Max Horkheimer, na célebre crítica à Indústria Cultural, o capitalismo avançado transformou a arte em mercadoria e o entretenimento em um sofisticado mecanismo de controle social. Esta é a cultura como hegemonia, no sentido gramsciano: o "braço estético" do poder, que opera não pela força bruta, mas pela sedução e pelo consenso.
Nessa lógica, o lazer é domesticado e a imaginação é confinada dentro dos moldes do consumo. O cinema, a música, a moda e as redes sociais passam a operar como engrenagens de uma máquina que padroniza o gosto, define o que é belo (geralmente, o branco e europeu) e, sobretudo, o que é aceitável. Celebrar a cultura, nesse contexto, exige perguntar: estamos celebrando a criação ou o conformismo? Estamos celebrando a diversidade ou a sofisticação da colonialidade?
A Insurgência da reexistência: O Saber que emerge das Margens
Entretanto, se há um lado da cultura que reproduz o poder, há outro que o subverte. É justamente nesse espaço de fissura, na contradição do sistema, que emergem as expressões que reescrevem o mundo a partir das margens. A cultura popular, negra, indígena, periférica e feminista tem sido, ao longo da história, um ato de insurgência, uma forma de dizer "nós existimos" diante de um sistema que insiste em silenciar.
O samba, nascido entre senzalas e cortiços, transformou a dor da diáspora em ritmo, memória e resistência. O hip-hop, com sua poética urbana, tornou-se o jornal da periferia, denunciando a violência do Estado e as desigualdades estruturais com mais contundência do que muitos editoriais da grande imprensa.
Na literatura, Conceição Evaristo nos ensinou que escrever é também viver — ou melhor, "escreviver". Sua escrita não é apenas literatura; é um método de produção de saber, herdeiro de vozes ancestrais que a história oficial tentou apagar, mas que ressurgem pela força da palavra. Da mesma forma, o funk, tantas vezes criminalizado, se ergue como a epistemologia do corpo. Num contexto que, como teorizou Fanon, busca disciplinar e alienar o corpo negro, o funk é a retomada indisciplinada desse corpo, afirmando o direito à festa, à voz e ao desejo.
Ciência: da Legitimação do Poder ao Epistemicídio
É aqui que a Cultura e a Ciência se encontram no mesmo campo de batalha. A "Ciência" que celebramos hoje, em seu modelo ocidental, positivista e universalista, foi a principal ferramenta de legitimação da ordem colonial e racial. Foi a "ciência" que mediu crânios para justificar a escravidão; foi a "ciência" da eugenia que definiu políticas de embranquecimento; foi a "ciência" que classificou saberes ancestrais como "superstição" ou "feitiçaria".
Este é o epistemicídio, como conceitua Boaventura de Sousa Santos: o assassinato deliberado de formas de conhecimento. Quando a ciência se fecha em si mesma, isolada em laboratórios e jargões técnicos, ela corre o risco de reproduzir as hierarquias do mesmo sistema que diz investigar. Ela opera com a mesma lógica da Indústria Cultural: define um padrão (o método científico ocidental) e descarta o resto.
A Desobediência Epistemológica: O futuro da luta
Nesse sentido, cultura e ciência são irmãs de uma mesma genealogia emancipatória, quando se propõem a isso. Ambas nascem da curiosidade humana e do desejo de compreender o mundo — mas também da necessidade de transformá-lo.
Uma ciência descolonizada, portanto, não é apenas aquela que "dialoga" com os saberes tradicionais. É aquela que reconhece o valor epistêmico da pajelança indígena, da tecnologia de cura dos terreiros, e que entende que o conhecimento não é monopólio de universidades, mas um bem comum da humanidade.
Neste Novembro Negro, a celebração da cultura e da ciência deve se converter em gesto político e ético. É tempo de compreender que, para os povos historicamente subalternizados, a arte e o saber nunca foram luxo — foram sobrevivência. Foi linguagem cifrada de liberdade, forma de manter viva a memória dos que vieram antes e de sonhar futuros possíveis. Em um país onde a necropolítica e o epistemicídio ainda definem quem tem o direito de viver e de saber, criar e pesquisar são atos de resistência.
Que o 5 de novembro não seja, portanto, apenas uma data comemorativa, mas um ato de desobediência epistemológica. Que celebremos as culturas que inquietam, as ciências que libertam, as artes que descolonizam nosso olhar e os saberes que reconstroem o mundo. Porque a verdadeira cultura não nos adormece — nos desperta. E a verdadeira ciência não apenas explica o real — ela o transforma.




















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