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As Veias Abertas da Memória: Saúde Mental e o Trauma Político do 11 de Setembro Chileno

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O 11 de setembro de 1973 não é apenas uma data inscrita na história política do Chile. É, sobretudo, uma ferida aberta na memória coletiva, cuja profundidade não se mede apenas em termos de repressão política ou de vidas ceifadas, mas também em termos de traumas psíquicos que se prolongam ao longo de gerações. O golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende inaugurou uma das ditaduras mais brutais da América Latina, marcada pela violência de Estado, pela tortura sistemática e pelos desaparecimentos forçados. Mais de cinquenta anos depois, as consequências desse evento seguem reverberando, não apenas nos relatos históricos, mas também nas subjetividades individuais e no tecido social chileno.


Trauma histórico e memória coletiva

A saúde mental de uma sociedade não pode ser entendida de forma isolada das experiências históricas que a constituem. O conceito de trauma histórico ajuda a compreender essa interseção entre o sofrimento psíquico e a violência política. Para Cathy Caruth (1995), o trauma não é simplesmente a lembrança de um acontecimento doloroso, mas a marca de algo que não pôde ser simbolizado no momento em que ocorreu e que retorna de maneira insistente, às vezes em formas distorcidas ou indiretas. A violência de Estado, como a que marcou a ditadura chilena, gera justamente esse tipo de experiência: uma ferida que se mantém viva, não apenas no indivíduo, mas no corpo social.

Dominick LaCapra (2001), por sua vez, diferencia acting out e working through: o primeiro refere-se à repetição compulsiva do trauma, à sua revivência inacabada; o segundo implica a possibilidade de elaborar e simbolizar a experiência traumática, ainda que nunca plenamente. Aplicando essa chave ao caso chileno, percebe-se como o negacionismo ou o silêncio oficial mantêm a sociedade presa no acting out, incapaz de transformar o trauma em aprendizado histórico. Só políticas de memória, justiça e reconhecimento permitem avançar em direção ao working through, condição para a saúde psíquica coletiva.

A psicanalista argentina Silvia Bleichmar (2006) defende que o trauma coletivo gera um “excedente de dor” que ultrapassa o indivíduo, infiltrando-se na cultura e nas instituições. No caso chileno, esse excedente se expressa na persistência de desigualdades, na dificuldade de consolidar a democracia e na presença de angústias difusas que atravessam gerações. Como sublinha Elizabeth Jelin (2002), as ditaduras latino-americanas não apenas destruíram corpos, mas também corroeram laços sociais, instaurando desconfiança e medo como afetos políticos duradouros.


A transmissão intergeracional do trauma

O trauma do 11 de setembro de 1973 não se limita às vítimas diretas. Pesquisas sobre transmissão intergeracional revelam que experiências de violência política são herdadas por filhos e netos, seja pelo silêncio familiar, seja pela ausência de figuras desaparecidas, seja pela repetição de angústias. A teórica da memória Marianne Hirsch (2008) desenvolveu o conceito de pós-memória para designar essa herança afetiva e psíquica: experiências que os descendentes não viveram diretamente, mas que moldam suas subjetividades como se fossem próprias.

No Chile, estudos demonstram que os filhos de ex-presos políticos, exilados e desaparecidos carregam marcas dessa violência, muitas vezes expressas em sintomas de ansiedade, depressão ou desconfiança institucional. A ferida do passado, portanto, não cicatriza automaticamente com a passagem do tempo: ela se reinscreve no presente, exigindo formas coletivas de elaboração.


Trauma e projeto de sociedade

A ditadura chilena não apenas perseguiu opositores: ela reconfigurou o tecido social e econômico do país. Tomás Moulian (1997) argumenta que o regime de Pinochet instaurou uma “sociedade do medo”, sustentada pela repressão e pelo neoliberalismo. O medo, nesse caso, não é apenas uma emoção individual: é uma estrutura psíquica coletiva que limita a ação política e enfraquece a solidariedade. Gabriel Salazar (2011), por sua vez, destaca que o trauma ditatorial bloqueou formas de participação popular, reforçando uma democracia restrita e desconectada das bases sociais.

Essa conexão entre trauma psíquico e projeto político é fundamental: não se trata apenas de sofrimento individual, mas de um modelo de sociedade moldado pela violência. A naturalização da repressão, o silêncio sobre os desaparecidos e o autoritarismo internalizado formam uma herança psíquica que continua a operar mesmo em períodos democráticos.


Memória, saúde mental e democracia

É por isso que a luta por memória, verdade e justiça não deve ser compreendida apenas como uma demanda política ou jurídica, mas como um imperativo de saúde pública e de saúde mental. O apagamento da memória histórica agrava o trauma, perpetuando o silêncio e naturalizando a violência. Iniciativas como o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, em Santiago, cumprem um papel essencial ao romper com o negacionismo e ao transformar a lembrança em espaço de elaboração coletiva. A memória, nesse sentido, não é apenas lembrança: é também cuidado, reconhecimento e possibilidade de cura.

O filósofo Walter Benjamin (1987) escreveu que “nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer”. Essa advertência ecoa fortemente no caso chileno. A negação da violência de Estado ou a tentativa de relativizar os crimes da ditadura não apenas reabrem feridas, mas aprofundam o sofrimento psíquico coletivo. A verdadeira reparação, portanto, não pode restringir-se a indenizações econômicas ou a julgamentos pontuais: ela exige o reconhecimento integral da violência, a preservação da memória e a construção de um pacto social que se recuse a repetir a barbárie.


Conclusão: memória como saúde

Ao vincular o debate sobre saúde mental à dimensão do trauma histórico, compreendemos que uma nação que não elabora seu passado violento adoece em sua capacidade de viver democraticamente. O Chile de hoje, ao lembrar o 11 de setembro de 1973, enfrenta não apenas um exercício de rememoração, mas uma luta pela própria saúde psíquica nacional. Se o trauma não é elaborado, ele se cristaliza; se não é simbolizado, retorna sob a forma de violência, polarização e descrédito das instituições.

Portanto, insistir em memória, verdade e justiça é insistir também em saúde, em dignidade e em possibilidade de futuro. O 11 de setembro chileno ensina que a democracia não se consolida apenas por meio de reformas institucionais ou da estabilidade econômica, mas também pelo enfrentamento das sombras que rondam o passado. Só assim será possível transformar o trauma em resistência, e a dor em uma memória viva que sustente a saúde mental coletiva.


Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BLEICHMAR, Silvia. Dolor País. Violencia social y subjetividad. Buenos Aires: Paidós, 2006.

CARUTH, Cathy. Trauma: Explorations in Memory. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995.

HIRSCH, Marianne. The Generation of Postmemory: Writing and Visual Culture After the Holocaust. New York: Columbia University Press, 2008.

JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI, 2002.

LACAPRA, Dominick. Writing History, Writing Trauma. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2001.

MOULIAN, Tomás. Chile actual: anatomía de un mito. Santiago: LOM Ediciones, 1997.

SALAZAR, Gabriel. En el nombre del poder popular constituyente. Santiago: LOM Ediciones, 2011.

MUSEO DE LA MEMORIA Y LOS DERECHOS HUMANOS. Memoria y Derechos Humanos en Chile. Santiago, 2019.

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