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O Racismo na Mira: Letalidade Policial e a Crise da Segurança Pública no Brasil


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1. A Promessa Que o Fuzil Quebra

O Estado moderno se alicerça na tese do contrato social, onde o monopólio da violência é entregue a ele com a condição de garantir a segurança e a vida de todos. Mas essa premissa fundadora é seletiva no Brasil; a cor da pele define quem será protegido e quem será visado. Ao analisar os números da violência policial, o ideal republicano não apenas se dobra, ele se desintegra: as forças de segurança transformaram-se em uma das principais fontes de medo e insegurança para a população negra.


O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 revela a crueldade: cerca de 80% das vítimas de intervenções policiais são pessoas negras. Este não é um erro marginal; é o retrato sistemático de uma política de extermínio racial. A letalidade policial transcende o desvio de conduta individual para se manifestar como a ponta de lança do racismo institucional. O sistema opera com um "suspeito padrão" definido pela cor da pele, pelo endereço de moradia e pela classe social. O que se convencionou chamar de "guerra às drogas" consolidou-se, de fato, como uma guerra de baixa intensidade contra a população negra, tornando favelas e periferias os campos de batalha onde a farda, que deveria zelar, frequentemente aponta o fuzil.


2. O Mecanismo da Violência: Perfilamento Racial e Impunidade

A violência policial é uma cadeia de eventos que se inicia muito antes do disparo. Ela começa na forma como o Estado historicamente enxerga o corpo negro. O perfilamento racial é o primeiro gatilho: ser negro no Brasil significa viver sob uma presunção de suspeita, herança direta da lógica escravocrata. Essa percepção — que transforma a identidade em ameaça — justifica abordagens mais agressivas, o uso desproporcional da força e a negação do direito à presunção de inocência.


Quando a vida negra é subjetivamente desvalorizada, o uso da força letal torna-se uma regra não escrita. E a impunidade cimenta esse ciclo. O sistema de justiça falha em investigar rigorosamente a maioria dos homicídios decorrentes de intervenção policial. A lentidão das corregedorias, a ausência de transparência nos protocolos operacionais e a falta de responsabilização efetiva enviam uma mensagem devastadora: que a eliminação de vidas negras em nome da "ordem" é tolerável, se não encorajada. Assim, a letalidade policial é um sistema que opera com eficácia: ela cumpre a função política de controle social, preservando o status quo racial e econômico por meio do terrorismo de Estado.


3. A Ausência de Cuidado: Racismo e o Não-Investimento em Vidas

A análise da letalidade policial exige o enquadramento na necropolítica, conceito que, conforme Achille Mbembe, descreve o poder estatal de determinar quem pode viver e quem deve morrer. No Brasil, o critério racial é o fio condutor dessa decisão. O racismo organiza a distribuição do abandono e orienta a ausência de cuidado.


A violência que ceifa vidas é apenas a mais extrema. Ela é precedida por uma violência estrutural de desumanização: o sucateamento de escolas, a ausência de saneamento, a falta de acesso a saúde mental e o encarceramento em massa. O Estado mata quando atira, mas também quando abandona. A letalidade policial é o braço armado de uma política mais ampla.


As consequências humanas são indescritíveis. Atingem a estrutura familiar, o desenvolvimento infantil e a saúde mental das comunidades, limitando o direito fundamental de ir e vir. Mães enlutadas, como as do movimento Mães de Maio ou Mães de Manguinhos, transformam sua dor em luta pela memória, mostrando que cada vida perdida é um futuro que se apaga, e um projeto de sociedade justa que é sabotado.


4. A Resposta Necessária: Políticas de Transparência e Controle

Diante desse quadro de crise humanitária, a transformação exige coragem e compromisso político inegociável. O Estado tem o dever ético e legal de reduzir a letalidade policial e de romper com o paradigma da guerra interna. Isso passa por um tripé essencial: transparência, controle e responsabilização.


O estudo de caso das câmeras corporais é um exemplo emblemático de que a solução existe e funciona. Em estados onde foram implementadas com rigor e protocolo adequado, a letalidade caiu mais de 50%. Essa tecnologia, quando utilizada para controle democrático e registro de evidências, age como um freio moral e legal, provando que a tecnologia pode salvar vidas.

Contudo, o controle técnico é insuficiente sem a reforma institucional. É preciso garantir a autonomia e a eficácia das corregedorias, ampliar o acesso público aos dados de operações e investir maciçamente em formação continuada com foco em direitos humanos e antirracismo estrutural para todo o efetivo. A segurança pública precisa ser reconstruída sob a ética do cuidado e da proteção, e não sob a lógica da eliminação.


5. O Imperativo da Vida Negra

A letalidade policial não é um problema de segurança; é a nossa maior crise de justiça racial e de direitos humanos. Enquanto as forças de segurança forem racializadas, a democracia brasileira permanecerá incompleta, com seu contrato social rasgado para a maioria da população.


É nesse ponto que o Sistema Integrado de Monitoramento da Igualdade Racial (SIMIR) se torna um ator estratégico. Ao sistematizar dados, mapear desigualdades e traduzir estatísticas em evidências irrefutáveis, o SIMIR oferece ferramentas para a denúncia eficaz e para a formulação de políticas públicas orientadas pela realidade. Os números, quando lidos criticamente, tornam-se instrumentos de resistência e de responsabilização do Estado.


O imperativo ético é inegociável: a vida negra importa. Não haverá segurança pública justa enquanto o Estado continuar mirando e vitimando os mesmos corpos que jurou proteger. A promessa da democracia só será cumprida quando o fuzil baixar, quando a cor da pele deixar de ser sentença e quando o cuidado substituir a violência como política pública. O direito de viver é o nosso pilar mais fundamental.


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