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A Cor do Afeto: O Racismo Estrutural na Fila de Adoção


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1. O Direito Inegociável e a Contradição Afetiva

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é o pilar legal que estabelece o direito fundamental de toda criança à convivência familiar e comunitária. Não é uma concessão, mas uma obrigação do Estado e da sociedade. No entanto, ao confrontarmos esse princípio com a realidade do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), somos forçados a encarar a hipocrisia moral da nação. Milhares de pretendentes habilitados aguardam, mas as duas pontas da fila não se tocam: há excesso de afeto represado e escassez de afeto direcionado. Os dados são categóricos: enquanto 60% das crianças com perfil para adoção são negras, a grande maioria dos pretendentes restringe sua escolha a crianças brancas, bem jovens ou de "traços finos".

Essa contradição é a manifestação mais íntima do racismo estrutural, que opera no nível do desejo e da construção familiar. A preferência por um determinado fenótipo não é uma escolha inofensiva; é o reflexo de um imaginário social construído pela supremacia branca, que desvaloriza a identidade e a beleza negra. A tese, aqui, é irredutível: o racismo no sistema de adoção não é um acaso, mas uma das faces mais perversas da desigualdade brasileira, pois nega a crianças negras o direito fundamental à família com base, pura e simplesmente, na cor de sua pele.

2. O Mecanismo da “Espera Qualificada”: Racismo Afetivo

O fenômeno que os estudos sociais denominam "racismo afetivo" impõe uma seleção brutal. O ideal romântico de "família ideal" — majoritariamente branco, jovem e com laços biológicos — atua como um filtro racial e etário. O impacto é a criação de uma dupla barreira para as crianças negras: são menos desejadas pela cor e, frequentemente, já estão fora da faixa etária mais procurada (bebês), condenadas a uma "espera qualificada" nos abrigos.

Essa espera não é um mero atraso burocrático, mas uma violência emocional constante. O tempo prolongado em instituições compromete o apego seguro, enfraquece o desenvolvimento afetivo e fomenta a sensação de que não são dignas de afeto. A criança internaliza o preconceito social. O racismo, nesse contexto, atua como um agente de sequestro do futuro, pois o tempo que se perde na infância jamais se recupera. A dor da rejeição coletiva se transforma em trauma individual.

3. A Cumplicidade do Sistema de Justiça e a Inércia Institucional

A inércia do sistema de justiça se configura como uma cumplicidade ética. O sistema de adoção, ao permitir que as preferências raciais sejam registradas no CNA, age como um mediador passivo de um preconceito ativo. A lei preserva o "direito de escolha" dos adultos, mas ignora o direito fundamental da criança à família, falhando em confrontar o cerne do problema.

As consequências são claras: as campanhas públicas de incentivo à adoção, ao evitarem o tema racial, tornam-se ineficazes. Falam em "adoção tardia" e "irmãos inseparáveis", mas falham em nomear o elefante na sala: a cor. O Estado, ao não instituir mecanismos obrigatórios de conscientização, legitima a noção de que o preconceito racial é uma "opção" familiar aceitável. Essa inação burocrática se torna o principal motor da permanência dessas crianças nos abrigos, reforçando o ciclo de exclusão.

4. A Resposta: Políticas de Conscientização e Formação Antirracista

Superar o racismo afetivo exige uma intervenção estatal e psicossocial corajosa. Não bastam campanhas emotivas; são necessárias políticas públicas concretas e formação antirracista estruturada. Estudos demonstram que cursos preparatórios para adoção que incorporam o debate racial obrigatório têm um efeito transformador, reduzindo a recusa e aumentando a adesão a perfis diversos. A adoção precisa ser entendida como um ato político e ético de compromisso com a reparação social.

O Estado e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) devem ser os motores dessa transformação:

* Formação Antirracista Obrigatória: O curso preparatório para pretendentes deve ser um espaço de confrontação direta ao racismo estrutural, desfazendo mitos sobre a identidade e a beleza negra.

* Ênfase na Necessidade da Criança: O sistema deve mudar o foco da "escolha do adulto" para a "necessidade da criança". Isso inclui a possibilidade de eliminar a opção de seleção por cor no CNA, priorizando o encontro do afeto com a criança que mais espera.

* Apoio e Incentivo: Criar programas de apoio psicológico e jurídico para famílias que adotam de forma interracial ou tardia, garantindo que o afeto tenha sustentação qualificada.

* Monitoramento com Responsabilização: Fortalecer o monitoramento através de ferramentas como o SIMIR, que produzem dados para responsabilizar o sistema pela inércia e guiar políticas públicas eficazes.

5. O Afeto é um Imperativo de Justiça

No cerne dessa discussão está a integridade moral da sociedade brasileira. O direito à convivência familiar é universal e não pode ser um privilégio racial. O racismo, ao se infiltrar nas relações mais íntimas, atinge a nossa capacidade de amar e de construir uma sociedade justa.

O SIMIR, enquanto ferramenta de diagnóstico e monitoramento, tem um papel essencial: revelar que o racismo opera silenciosamente em nossos afetos, silêncios e escolhas cotidianas. Seus dados são mais do que estatísticas — são chamados urgentes à responsabilidade coletiva.

O Brasil precisa reconhecer que o afeto é um ato de justiça. Cada criança negra que envelhece em um abrigo é um atestado da falha do nosso contrato social. Que o amor e a coragem institucional, e não o racismo, definam o destin

o das nossas crianças.

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