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Racismo O Clima da desigualdade: A vida Negra na Zona de Sacrifício Ambiental


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1. A Neutralidade Que Não Existe

Há um mito insidioso que permeia o debate global sobre o clima: o de que a crise atinge a todos igualmente. Fala-se em aquecimento global, em enchentes históricas e em colapso ambiental como se o desastre fosse um evento aleatório. Mas a realidade social demonstra que o clima, embora global, tem endereço certo para manifestar seu sofrimento. E esse endereço, no Brasil, tem cor e classe. Segundo dados contundentes do IBGE e da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), a população negra tem até três vezes mais chances de residir em áreas de risco – territórios vulneráveis a deslizamentos, inundações e à poluição crônica.

Esses números não são o resultado de coincidências geográficas ou de má sorte individual. Eles são o mapa da crueldade, desenhando uma geografia do racismo. A vulnerabilidade a desastres e à poluição não surge do acaso, mas da forma como o Estado e a lógica do desenvolvimento definem o que pode ou não ser sacrificado. É nesse terreno que o conceito de Racismo Ambiental ganha sua força máxima: a política e a economia tratam certas vidas e territórios como descartáveis, delimitando verdadeiras zonas de sacrifício onde a sobrevivência negra é diariamente testada. Portanto, a luta por Justiça Climática não é uma pauta secundária de sustentabilidade; é uma luta antirracista fundamental pela dignidade e pela vida.


2. A Gênese do Risco: Racismo Estrutural no Urbanismo

A história urbana do Brasil é inseparável da história de sua exclusão racial. Após a abolição, a população negra, desprovida de qualquer política de integração ou reparação, foi sistematicamente afastada dos centros de investimento e empurrada para as franjas — as encostas instáveis, os morros, as beiras de rios e os terrenos sem regularização. Esse movimento não foi espontâneo; é a cristalização do racismo estrutural que se incorporou como um software defeituoso ao planejamento urbano brasileiro.

O resultado é o que sociólogos e urbanistas chamam de “risco construído”. Não há "desastres naturais" quando o que causa a tragédia é a negligência planejada. O que mata não é a força da chuva, mas a ausência de drenagem; não é a instabilidade do solo, mas a falta de contenção de encostas e a ausência de saneamento básico. Cada tragédia anunciada é, na verdade, um reflexo do conhecimento que não se transforma em ação. O Estado possui os mapas de risco, sabe onde estão as encostas frágeis e as famílias ameaçadas — mas essa informação raramente se converte em investimento ou prevenção nas comunidades negras. A vida, nesse contexto, torna-se uma aposta contra a infraestrutura.


3. As Duas Faces da Injustiça Ambiental

A injustiça ambiental manifesta-se em duas faces complementares, cada uma com um custo humano incalculável: a face da destruição súbita e a face da poluição silenciosa.

A primeira é a mais dramática e midiática: as enchentes, os deslizamentos, as casas que viram escombro. Nas comunidades negras, a perda é total. Não se mede apenas em bens materiais, mas na dissolução da memória, no luto racializado e na interrupção violenta de histórias. A cada verão, o noticiário fala em "fatalidade" e "chuvas fortes", mas raramente em racismo ambiental — o fator que colocou aquelas famílias naquele lugar, sem segurança.

A segunda face é mais insidiosa e crônica: é a exposição constante à poluição. São as comunidades que se tornam as vizinhas indesejadas de lixões, aterros sanitários, grandes indústrias tóxicas e vias de alta poluição do ar. Respiram o ar contaminado, convivem com a água imprópria. Essa é a violência lenta, silenciosa, que o Estado permite ao negligenciar o zoneamento e a fiscalização. O resultado é o adoecimento crônico: taxas alarmantes de asma infantil, cânceres, doenças de pele. O corpo negro torna-se o arquivo vivo da poluição e da desigualdade (Nixon, 2011), uma prova biológica de que o direito a um ambiente saudável é negado.


4. O Desafio e a Inação Institucional

O poder público não é ingênuo sobre o risco; ele o administra de forma seletiva. As prefeituras e a Defesa Civil possuem o conhecimento técnico, os mapas de risco e os alertas, mas a aplicação dos recursos segue outra lógica: a da visibilidade política e da especulação imobiliária, e não a da urgência racial. Quando o desastre ocorre, há a comoção imediata e a resposta improvisada, mas nunca a reparação verdadeira que ataca as causas estruturais.

O custo dessa omissão institucional é uma dívida histórica que se renova a cada desastre. A Justiça Climática deve ser compreendida, portanto, como uma forma urgente de reparação racial. Não basta reagir às catástrofes: é preciso planejar o cuidado. Isso significa investir maciçamente em reassentamentos dignos, com infraestrutura completa e acesso a serviços públicos, além de punir as empresas poluidoras que operam sem fiscalização próxima a comunidades vulneráveis. A política ambiental e urbana precisa urgentemente deixar de ser reativa e se transformar em um instrumento ativo de redistribuição da dignidade.


5. O Caminho da Transformação e o Papel dos Dados

A transformação necessária é complexa, mas inadiável. Ela exige políticas baseadas em evidências sólidas. Para isso, é indispensável que os dados saiam do papel e revelem, com precisão, onde, como e sobre quem o racismo ambiental atua. O planejamento precisa ser cirúrgico.

Nesse contexto, o Sistema Integrado de Monitoramento da Igualdade Racial (SIMIR) surge como uma ferramenta estratégica e essencial. Ao cruzar indicadores de infraestrutura, risco, saneamento e raça (dados demográficos), o SIMIR permite visualizar a desigualdade ambiental como ela é: racializada e territorializada. Com ele, é possível identificar quais comunidades vivem sob maior ameaça, mapear o déficit de saneamento e pressionar por uma alocação de recursos que priorize vidas e não a lógica do mercado. O dado, quando colocado a serviço da justiça, deixa de ser uma estatística e transforma-se em um instrumento poderoso de resistência e mudança.


6. Conclusão: A Luta pela Vida é a Luta pelo Território

O Racismo Ambiental é uma das faces mais perversas da desigualdade brasileira porque opera silenciosamente, naturalizando a negação do direito à vida para uma parte da população. Lutar contra ele é afirmar, com urgência, que a vida negra importa em cada mapa da cidade, no traçado das ruas, no fluxo dos rios e no direito de respirar sem adoecer.

A luta pela vida é, portanto, inseparável da luta pelo território. O território não é apenas o espaço físico; é o espaço do possível, do futuro, da permanência e da dignidade. O SIMIR nos dá as ferramentas para provar que a negligência tem cor e, assim, para exigir que o investimento tenha cor e urgência.

Enquanto o direito a um ambiente saudável for privilégio de cor, nenhuma cidade será justa. Que este ensaio ecoe como um chamado à ação — ao Estado, à sociedade e a cada um de nós: não haverá justiça climática sem justiça racial.

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