A Sinfonia Distorcida: representação social, marginalização, disputa cultural e o linchamento social na trajetória de Oruam
- Helbson de Avila
- 26 de fev.
- 4 min de leitura

O cenário do trap brasileiro, um caldeirão de ritmos viscerais e letras que escancaram a realidade das periferias, torna-se ainda mais complexo quando analisado através das lentes da representação social, da marginalização, da disputa cultural e, crucialmente, do linchamento social. A trajetória de Oruam, um artista que personifica as tensões e contradições desse universo, serve como um estudo de caso emblemático para desvendar as engrenagens dessa intrincada maquinaria social.
Representação Social: o Estigma e o Espelho Fragmentado
Ecoando as palavras de Serge Moscovici, a representação social se manifesta como um “conjunto de conceitos, afirmações e explicações originadas na vida cotidiana, no curso das comunicações interindividuais” (Moscovici, 1978). No contexto do trap, as letras que reverberam a violência e o cotidiano do crime constroem representações sociais multifacetadas. Para muitos, essas representações reforçam o estigma, cristalizando a imagem do jovem periférico como um potencial infrator. No entanto, para outros, as mesmas letras funcionam como um espelho fragmentado, refletindo suas próprias experiências e anseios, solidificando um sentimento de pertencimento. Oruam, em diversas faixas, explicita essa realidade crua, como em trechos que ecoam: “A vida é loka e o crime não compensa / Mas a necessidade faz o preto pensar”.
Oruam, ao trazer à tona a figura de seu pai, Marcinho VP, líder de uma facção criminosa, desafia as representações sociais hegemônicas. A imagem de Marcinho VP estampada em sua camiseta, acompanhada da palavra “liberdade”, desencadeia uma onda de reações polarizadas. O que para alguns é apologia ao crime, para outros é uma contestação da narrativa oficial sobre a violência nas favelas. A representação social, nesse caso, torna-se um campo de batalha simbólico, onde diferentes grupos disputam a hegemonia da interpretação.
Marginalização: a exclusão do centro e a criminalização da Cultura
A marginalização, como nos ensina Robert Park, “é um processo que produz pessoas que vivem à margem da sociedade, que não estão completamente incluídas em nenhum grupo social” (Park, 1928). Os artistas de trap, em sua maioria oriundos de comunidades periféricas, experimentam essa exclusão em diversas esferas. A falta de acesso a oportunidades, o preconceito e a discriminação são faces visíveis da marginalização. Essa vivência é escancarada em letras como “Favela venceu, mas ainda sangra / A luta é diária, a vitória é rara”, onde Oruam expõe a dualidade entre ascensão e a persistência das dificuldades.
No entanto, a exclusão também se manifesta no plano simbólico, através da criminalização da cultura periférica. A tentativa de proibir o “proibidão”, um estilo musical que retrata a realidade das favelas, é um exemplo flagrante dessa marginalização simbólica. Ao negar a legitimidade da cultura produzida nas periferias, o Estado e setores da sociedade buscam silenciar vozes dissonantes e impor uma visão de mundo hegemônica.
Disputa Cultural: a luta por Reconhecimento e Legitimidade
A disputa cultural, como observa Pierre Bourdieu, é um “campo de lutas onde os agentes se confrontam para impor a sua definição legítima do mundo social” (Bourdieu, 1989). No cenário do trap, essa luta se materializa no embate entre aqueles que defendem a liberdade de expressão dos artistas e aqueles que buscam censurar suas letras, sob o pretexto de combater a apologia ao crime. Oruam, em suas músicas, aborda frequentemente a temática da liberdade de expressão e a realidade das ruas, como em versos que expressam: “Censura não cala a voz da favela / A nossa verdade ecoa na viela”.
Oruam, ao desafiar as normas e convenções, coloca-se no epicentro dessa disputa. Sua música, sua imagem e suas declarações públicas tornam-se armas nesse campo de batalha simbólico. A reação polarizada à sua figura revela a intensidade da luta por reconhecimento e legitimidade dos jovens da periferia, que buscam afirmar sua identidade e sua cultura em um contexto de marginalização e silenciamento.
Linchamento Social: a punição sumária e a espiral do ódio
A teoria do linchamento social, um fenômeno amplificado pelas mídias sociais, surge como um elemento crucial na análise da trajetória de Oruam. O linchamento social, como define Jon Ronson, é um “processo de humilhação pública e ostracismo que ocorre quando uma pessoa é acusada de um delito ou comportamento considerado inaceitável” (Ronson, 2015). A velocidade e o alcance das mídias sociais transformam o linchamento em uma punição sumária, onde a presunção de inocência é sumariamente ignorada e descartada.
No caso de Oruam, a exposição de sua vida pessoal e a repercussão de suas declarações nas mídias sociais o transformam em alvo de ataques virulentos. Críticas, xingamentos e ameaças inundam suas redes sociais, configurando um linchamento virtual que busca punir o artista por suas “transgressões”. A intensidade e a desproporcionalidade dos ataques revelam a face cruel do linchamento social, onde a busca por justiça se transforma em sede de vingança.
O linchamento social, ao criminalizar a figura do artista, busca silenciar sua voz e deslegitimar sua representação da realidade. A espiral do ódio que se instala nas mídias sociais impede o debate público e a reflexão crítica, transformando o diálogo em um campo minado de acusações e ataques pessoais.
Considerações Finais: a complexa Teia Social
A trajetória de Oruam, como um estudo de caso, revela a intrincada teia de representação social, marginalização, disputa cultural e linchamento social que molda o cenário do trap brasileiro. As controvérsias que o cercam não são meros eventos isolados, mas sim manifestações de dinâmicas sociais complexas que envolvem a luta por reconhecimento, identidade e poder simbólico. A análise dessas dinâmicas, através das lentes das teorias sociais, permite uma compreensão mais profunda das tensões e contradições que permeiam a sociedade brasileira contemporânea.
Bibliografia
Alves, I. R. (2018). Batidão: uma antropologia do funk. Azougue Editorial.
Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Difel.
Bourdieu, P. (1998). A dominação masculina. Bertrand Brasil.
Jodelet, D. (2001). Representações sociais: um domínio em expansão. EDUERJ.
Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Zahar.
Park, R. E. (1928). Human migration and the marginal man. American journal of sociology, 33(6), 881-893.
Ronson, J. (2015). So you've been publicly shamed. Riverhead Books.
Zaluar, A. (1994). Condomínio do diabo. Revan.
ORUAM. A vida é loka. (Trecho citado no ensaio).
ORUAM. Censura não cala. (Trecho citado no ensaio).
ORUAM. Favela venceu. (Trecho citado no ensaio).




















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