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A violência armada e as racialidades no Brasil: uma análise do relatório do Instituto Fogo Cruzado (2024)

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Introdução

A violência armada no Brasil tem sido um problema persistente e complexo, com impactos devastadores nas dinâmicas sociais, políticas e econômicas do país. O Relatório Anual de 2024 do Instituto Fogo Cruzado, ao mapear os episódios de violência armada em quatro regiões metropolitanas — Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Belém —, evidencia como esse fenômeno afeta desproporcionalmente determinados grupos populacionais, em especial a população negra.

Este ensaio analisa o conteúdo do relatório sob a perspectiva das racialidades, entendendo que a construção social da raça e seus significados são centrais para compreender como a violência armada é distribuída no Brasil. A partir de um referencial teórico que abarca conceitos como necropolítica (Mbembe, 2018), colonialidade do poder (Quijano, 2005) e genocídio negro (Nascimento, 1978), argumenta-se que a violência não é um evento aleatório, mas um processo historicamente estruturado que se insere nas lógicas do racismo estrutural e institucional.

1. Racialidades e a letalidade policial

A letalidade policial é um dos principais componentes da violência armada no Brasil. O relatório do Instituto Fogo Cruzado indica que, na Bahia, a polícia estadual é a mais letal do país, um dado que se alinha a padrões históricos de violência racializada no Brasil.

Um caso emblemático que ilustra essa dinâmica ocorreu em 2024, quando um policial foi filmado agredindo e atirando contra um adolescente e um jovem negro, resultando em suas mortes. Esse episódio, longe de ser um caso isolado, reflete um padrão mais amplo de atuação policial, em que corpos negros são vistos como alvos legítimos da repressão estatal. O conceito de necropolítica, de Achille Mbembe (2018), ajuda a entender esse fenômeno, ao descrever como o Estado exerce seu poder por meio da gestão da morte, decidindo quais vidas são passíveis de proteção e quais são consideradas descartáveis.

Além disso, o relatório evidencia que a letalidade policial não somente mata, mas também dissemina o terror nas comunidades negras, afetando o cotidiano de milhões de pessoas. Crianças crescem sob o som de tiros, famílias perdem entes queridos sem explicação, e a naturalização da violência contribui para a perpetuação de ciclos de pobreza e exclusão.

2. A vulnerabilidade de Quilombos à violência estatal

Outro dado relevante do relatório é a vulnerabilidade dos quilombos à violência armada, especialmente no Pará. Entre maio e agosto de 2024, três homens foram mortos em circunstâncias semelhantes durante operações policiais no Quilombo do Cupuaçu. Essas mortes reforçam a permanência de uma lógica de violência contra populações quilombolas, que remonta ao período colonial.

A colonialidade do poder, conforme Quijano (2005), explica como os processos de dominação colonial continuam a estruturar as relações sociais contemporâneas. Quilombolas, historicamente associados à resistência, seguem sendo alvo de repressão estatal, e a criminalização dessas comunidades se perpetua por meio de narrativas que os vinculam ao “atraso”, à “ameaça à propriedade” ou à suposta ligação com atividades ilícitas.

Além da violência policial, os quilombos enfrentam ameaças de milícias e grupos paramilitares ligados ao agronegócio e ao garimpo ilegal. Esse contexto evidencia que a violência armada nos quilombos não é somente um reflexo da criminalidade urbana, mas parte de um projeto mais amplo de expropriação territorial e exclusão racial.

3. Concentração da violência em áreas de maioria negra

Em Salvador, os bairros mais afetados por tiroteios no entorno escolar possuem alta proporção de população negra. O relatório aponta que, em Fazenda Grande do Retiro — onde 86% dos habitantes são negros —, ocorreram 20 tiroteios próximos a escolas em 2024. Esse dado evidencia que a racialidade negra se entrelaça com a geografia urbana, concentrando a violência armada em territórios racializados.

A segregação espacial das cidades brasileiras, herança da escravidão e das políticas urbanas excludentes do século XX, continua a definir quem tem direito à segurança e quem vive sob constante ameaça de morte. A ausência de investimentos públicos em infraestrutura, saúde e educação nessas áreas fortalece ciclos de marginalização e vulnerabilidade social.

O conceito de racismo ambiental, abordado por autores como Tavares (2021), também pode ser mobilizado aqui. Ele descreve como políticas públicas e ações estatais impactam negativamente grupos racializados ao negligenciar suas necessidades básicas, como saneamento, acesso à água potável e segurança. A violência armada, portanto, deve ser compreendida não apenas como uma questão de segurança pública, mas como um problema estrutural que reflete desigualdades históricas.

4. Subnotificação racial das vítimas e obstáculos à construção de Políticas Públicas

Um dos desafios apontados pelo relatório é a subnotificação da raça das vítimas de violência armada. Na Bahia, por exemplo, 57% dos casos registrados em 2024 não incluíam a identificação racial das vítimas. Esse apagamento estatístico dificulta a formulação de políticas públicas eficazes e contribui para a invisibilização do impacto racial da violência.

A ausência de dados desagregados por raça não é acidental, mas reflete uma tradição de omissão do Estado brasileiro em reconhecer o racismo como um fator central na produção da violência. Como destaca a socióloga Vilma Reis (2020), a produção de dados raciais na segurança pública é uma ferramenta essencial para desmantelar o mito da democracia racial e evidenciar as desigualdades estruturais que sustentam a violência contra negros.

Discussão

A análise do relatório do Instituto Fogo Cruzado à luz das racialidades revela que a violência armada no Brasil não se distribui de forma aleatória, mas se concentra em grupos racializados específicos. A letalidade policial contra negros, a vulnerabilidade de quilombos e a concentração da violência em áreas de maioria negra demonstram como as racialidades moldam as experiências de violência e vitimização.

Além disso, a subnotificação de dados raciais mostra que o racismo opera também na esfera da produção do conhecimento, dificultando a elaboração de políticas públicas baseadas em evidências.

Recomendações

Superar a violência armada no Brasil exige reconhecer e enfrentar o racismo estrutural que permeia as instituições e as práticas sociais. Algumas ações fundamentais incluem:

  • Produção de dados desagregados por raça: ampliar a coleta e divulgação de informações sobre a identidade racial das vítimas para possibilitar a formulação de políticas públicas mais precisas.

  • Revisão das práticas policiais: implementar protocolos de desmilitarização e combate à letalidade policial, garantindo mecanismos eficazes de responsabilização.

  • Investimento em territórios racializados: direcionar recursos para educação, saúde e infraestrutura em áreas de maioria negra, combatendo as desigualdades socioespaciais que perpetuam a violência.

  • Proteção dos quilombos: criar medidas específicas para proteger comunidades quilombolas contra a violência estatal e privada, garantindo seus direitos territoriais e culturais.

A construção de uma sociedade mais justa e igualitária depende da garantia da segurança e da justiça para todos, independentemente da cor da pele.

Bibliografia

  • Instituto Fogo Cruzado. (2025). Relatório Anual 2024. Rio de Janeiro: Instituto Fogo Cruzado.

  • Mbembe, A. (2018). Necropolítica. São Paulo: n-1 edições.

  • Nascimento, A. (1978). O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

  • Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Clacso.

  • Reis, V. (2020). Segurança pública e racismo no Brasil. Salvador: Edufba.

  • Tavares, A. (2021). Racismo ambiental e desigualdade social no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.


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