As novelas midiáticas, o protagonismo negro e indígena, e as racialidades: um ensaio crítico aprofundado sobre representações e poder simbólico
- Helbson de Avila
- 21 de abr.
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Introdução
As novelas midiáticas brasileiras erguem-se no cenário cultural como poderosos arquitetos de subjetividades, moldando o imaginário social e costurando a complexa tapeçaria da identidade nacional. Exibidas em horário nobre, essas narrativas audiovisuais penetram diariamente nos lares de milhões, transcendendo o mero entretenimento para atuar como veículos de educação informal, normalização de comportamentos e, crucialmente, como construtoras de símbolos e narrativas que definem quem detém valor e quem é relegado às margens na sociedade brasileira. Neste palco simbólico de imensa influência, a representação de personagens negros, negras e indígenas — a frequência de sua presença ou ausência, os contornos de seus papéis, os estereótipos persistentes e os raros, porém significativos, momentos de protagonismo — funciona como um espelho nítido, ainda que por vezes distorcido, das profundas tensões raciais que estruturam o Brasil. Este ensaio propõe uma análise crítica aprofundada dessa dinâmica, explorando a intrincada relação entre as telenovelas, o protagonismo negro e indígena e as racialidades, sob a luz da teoria crítica da comunicação, dos estudos decoloniais e das epistemologias negras e indígenas.
1. A Telenovela como Dispositivo Ideológico e Hegemônico
A telenovela brasileira é mais que um produto cultural; é um fenômeno comunicacional de alcance singular. Suas raízes fincadas nos folhetins radiofônicos e literários do século XX floresceram em um dos principais produtos de exportação da indústria cultural nacional. Contudo, sua relevância transcende o valor econômico. A telenovela desempenha um papel central na fabricação de consensos sociais, na disseminação de valores e na solidificação de hierarquias. Como nos alerta Stuart Hall, a mídia opera como um aparelho ideológico, veiculando discursos hegemônicos sob um véu de aparente neutralidade. Ele argumenta que “a representação é uma parte essencial do processo pelo qual o sentido é produzido e intercambiado entre membros de uma cultura” (Hall, 2016). No universo das novelas, esses discursos têm, historicamente, ecoado e reforçado estruturas de poder racializadas, perpetuando ciclos de exclusão disfarçados de entretenimento popular.
2. A Norma da Invisibilidade e dos Estereótipos Redutores
Por longas décadas, a paisagem ficcional das telenovelas relegou os corpos negros e indígenas a um espaço de invisibilidade ou a representações profundamente estereotipadas, funcionando como ferramentas de desumanização e controle simbólico. Quando presentes, personagens negros eram confinados a papéis secundários, subalternos, ou a arquétipos redutores: a empregada doméstica leal e sem voz própria, o motorista serviçal, o criminoso inerentemente perigoso, o malandro estereotipado, o escravizado conformado ou o alívio cômico desprovido de complexidade. Intelectuais como Clóvis Moura e Lélia Gonzalez foram vozes pioneiras na denúncia do uso sistemático desses estereótipos. Lélia Gonzalez (2020) apontava como a sociedade racista nos designa um lugar específico: “O lugar em que nos situam é o lugar do Outro (...) É nesse lugar que nos falam, é nesse lugar que nos calam.” A televisão, nesse aspecto, atuou como um reflexo amplificado de uma sociedade estruturalmente racista, como analisou Clóvis Moura (2019), que desvendou as engrenagens do racismo para além do preconceito individual, mostrando-o como "uma estrutura de dominação que permeia todas as instituições". Essa estrutura validou e naturalizou o lugar social marginalizado destinado às populações negra e indígena.
3. O Protagonismo Negro e Indígena: Avanços Tímidos e Desafios Persistentes
A ascensão de protagonistas negros e, de forma ainda mais rara, indígenas, nas tramas principais das novelas brasileiras é um desenvolvimento relativamente recente e marcado por sua excepcionalidade. Taís Araújo fez história como a primeira atriz negra a protagonizar uma novela no horário nobre da TV Globo com "Da Cor do Pecado" (2004). Contudo, mesmo esse marco foi recebido com reações atravessadas pelo racismo, como a própria atriz relatou, expondo a resistência de parte do público e da crítica a essa mudança.
Desde então, observamos avanços, ainda que tímidos. A presença negra em papéis centrais ganhou maior visibilidade e complexidade com artistas de imenso talento e relevância cultural. Lázaro Ramos, uma figura multifacetada como ator, diretor e escritor de vasta influência, consolidou-se como referência, estrelando produções como "Ó Paí, Ó", "Mister Brau" (ao lado de Taís Araújo) e "Amor de Mãe", além de ser autor de livros infantojuvenis focados na autoestima negra. Camila Pitanga brilhou em protagonistas de novelas como "Lado a Lado" e "Velho Chico", destacando-se também por seu engajamento político e atuação na produção e direção audiovisual com foco em diversidade. Atores como Fabrício Boliveira (com atuações marcantes em "Segundo Sol", "Todas as Flores", e destaque no cinema em "Simonal" e "Marighella"), Ícaro Silva (versátil em "Verdades Secretas", "Cara e Coragem", teatro e cinema, com forte presença em debates públicos), Jéssica Ellen (notória desde "Malhação" até "Amor de Mãe", também cantora e voz ativa no debate sobre maternidade negra e antirracismo), Lucy Ramos (com trajetória sólida desde "Sinhá Moça" e conhecida pela luta contra o racismo nos bastidores), Bukassa Kabengele (presença marcante em papéis dramáticos em novelas e séries), Dan Ferreira (emergindo em produções contemporâneas para TV, cinema e streaming como "Segundo Sol" e "Amor de Mãe") e Jonathan Azevedo (cujo "Sabiá" em "A Força do Querer" marcou época, atuando também na música, teatro e em projetos sociais voltados à juventude negra) têm conquistado papéis de maior densidade e impacto narrativo.
No entanto, é crucial sublinhar que o protagonismo negro ainda não se tornou a regra, permanecendo como uma exceção notável, mas não normalizada. Além disso, a questão do "lugar de fala" permanece central, visto que muitas dessas narrativas ainda são concebidas e dirigidas por equipes majoritariamente brancas, levantando questionamentos sobre a autenticidade, a profundidade e o direito à auto-representação.
Paralelamente, a representatividade indígena nas telenovelas continua sendo ainda mais escassa e problemática. Frequentemente, quando personagens indígenas aparecem, são relegados a estereótipos que remetem a um passado idealizado ou a figuras exóticas, raramente ocupando espaços de protagonismo ou tendo suas complexas realidades contemporâneas exploradas. Atrizes como Suyane Moreira, que teve papéis de destaque em produções como "Amazônia, de Galvez a Chico Mendes", representam pontos de visibilidade importantes, mas ainda isolados, evidenciando uma camada adicional de invisibilidade e exclusão no imaginário midiático hegemônico. A experiência da racialização, como descrita por Frantz Fanon (2008) em Pele Negra, Máscaras Brancas, revela o peso desse olhar externo: “Quando me amam, dizem que me amam apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é por causa da minha cor... Em qualquer situação, sou prisioneiro deste círculo infernal.” Essa prisão simbólica se reflete na dificuldade de acesso a papéis complexos e protagonistas para atores e atrizes racializados.
4. A Racialidade como Categoria Analítica Estrutural
Superando a mera contagem quantitativa de atores negros ou indígenas em cena, é imperativo analisar a racialidade como um marcador que estrutura fundamentalmente as relações sociais e, por extensão, as midiáticas. Inspirando-nos em pensadores como Fanon, Mbembe e Gonzalez, entendemos a racialidade não como um traço individual, mas como um eixo constitutivo do poder simbólico. A questão não é apenas incluir mais personagens negros e indígenas, mas transformar radicalmente as estruturas narrativas, visuais e ideológicas que historicamente definiram a telenovela. Achille Mbembe (2018) nos lembra que a construção da raça tem consequências materiais e simbólicas profundas, afirmando que “A ‘raça’ (...) continua a ser um dos significantes crus da exclusão e da violência em nosso tempo.” A racialidade nos obriga a reconhecer que identidades não são neutras; são campos de disputa atravessados por histórias de poder, política e conhecimento.
5. Rumo a uma Representatividade Crítica e à Redistribuição de Poder
A simples inserção de personagens negros e indígenas nas novelas, embora positiva, não é suficiente para promover uma transformação social profunda. É necessário transcender a representatividade meramente simbólica e avançar em direção a uma representatividade crítica. Esta implica em questionar e reconfigurar o próprio sistema midiático. Isso passa pela formação, contratação e valorização de roteiristas, diretores, produtores e técnicos negros e indígenas; pela democratização radical dos espaços de tomada de decisão nas emissoras e produtoras; e pela promoção ativa de uma estética decolonial que celebre e incorpore referências culturais afro-brasileiras, indígenas e periféricas, rompendo com a hegemonia eurocêntrica. A luta por representatividade é indissociável da luta por redistribuição efetiva de poder e por reparação histórica. Essa necessidade de transformação estrutural ecoa o pensamento de Djamila Ribeiro (2019), que ao discutir o conceito de lugar de fala, ressalta sua importância para a própria existência: "Falar não se trata apenas do ato de emitir palavras, mas de poder existir." Artistas como os mencionados anteriormente, muitos dos quais utilizam suas plataformas para o ativismo, personificam essa busca por uma presença que não seja apenas decorativa, mas transformadora. Nomes emergentes como MC Carol (explorando a atuação com forte impacto cultural em 'Encantado’s'), a rapper e atriz Gabz (despontando em séries como 'A Vida Pela Frente' com forte presença no discurso decolonial), o ator e roteirista Pedro Guilherme (revelação em projetos de streaming e canais pagos), e talentos como Val Perré, Naruna Costa, Dandara Mariana e Aline Borges (com papéis expressivos em séries e novelas recentes) também contribuem com novas linguagens e perspectivas, tensionando as estruturas a partir de suas existências e atuações.
6. A Resistência e a Potência das Mídias Negras e Alternativas
Em contraposição à hegemonia simbólica exercida pela grande mídia, coletivos, plataformas e iniciativas de mídia negra e indígena (como Alma Preta, Mídia Ninja, Perifa Connection, Cine África, Rádio Yandê, entre muitos outros) têm desempenhado um papel vital na construção de contra-narrativas e na afirmação de novas subjetividades. Projetos como esses funcionam como importantes tensionadores do monopólio narrativo. Eles oferecem espaços cruciais para a expressão da multiplicidade de vivências negras e indígenas, onde a racialidade é reivindicada com agência, orgulho e complexidade. Essas mídias alternativas operam como contra-espaços discursivos, demonstrando a viabilidade de produzir dramaturgia, jornalismo e audiovisual com protagonismo negro e indígena fora das lógicas predominantemente comerciais e muitas vezes racistas da indústria tradicional, exercendo uma forma de contra-hegemonia.
Conclusão: Descolonizar a Telenovela para Democratizar o Imaginário Coletivo
O combate ao racismo estrutural e institucional na mídia brasileira exige, de forma inegociável, um profundo processo de descolonização estética e narrativa das telenovelas. Isso implica ir além da representação superficial de personagens, repensando as próprias estruturas dramáticas, os roteiros, os olhares da direção e da câmera, e, fundamentalmente, os lugares de fala e decisão. Significa, também, a implementação de políticas públicas robustas de incentivo à produção audiovisual negra e indígena, a descentralização dos meios de comunicação e a democratização efetiva do acesso à criação, produção e difusão cultural. O protagonismo negro e indígena nas novelas não pode ser tratado como uma concessão esporádica ou uma resposta a pressões momentâneas; deve ser compreendido e garantido como um direito cultural, político e humano fundamental. Somente através desse caminho árduo, mas necessário, a televisão brasileira poderá, enfim, aspirar a ser um espelho crítico e diverso de sua sociedade, e não um mero reprodutor de suas desigualdades mais profundas, contribuindo para a construção de um imaginário verdadeiramente democrático e plural.
Referências Bibliográficas
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 1 2020.
HALL, Stuart. Cultura e Representação. Organização de Daniel Miranda. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Marta Lança. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019. (Reedição).
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2019. (Coleção Feminismos Plurais).




















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