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Por que discutir o papel da Branquitude na luta antirracista?

Em sociedades estruturadas pelo racismo, como o Brasil, a luta antirracista é mais do que uma demanda moral: é um imperativo ético, político e civilizatório. Historicamente, os movimentos antirracistas têm se concentrado – de forma legítima e necessária – na denúncia das violências sofridas pelas populações negra e indígena, bem como na afirmação de suas identidades, histórias e direitos. No entanto, para desmantelar com eficácia o edifício racial que sustenta a desigualdade, torna-se igualmente vital lançar luz sobre o outro lado da equação: a branquitude.

Este ensaio propõe uma introdução robusta ao campo dos Estudos Críticos da Branquitude, defendendo que compreender a branquitude como uma construção social, histórica e política — e não apenas como marcador fenotípico — é essencial para a efetividade da luta antirracista. Discutir a branquitude implica desvendar a normalização do ser branco como parâmetro universal e questionar os privilégios e estruturas de poder que dela derivam.


Desfazendo Mitos: A análise não é sobre culpabilização individual, mas sobre Estruturas Sistêmicas

A discussão sobre branquitude frequentemente provoca resistências, geralmente ancoradas em interpretações equivocadas de que se trata de um ataque moral individualizado às pessoas brancas. É crucial esclarecer: os Estudos Críticos da Branquitude não têm como objetivo atribuir culpas pessoais, mas analisar criticamente as engrenagens que tornam a branquitude uma posição de vantagem sistematicamente reproduzida.

Como ressalta a pesquisadora Lia Vainer Schucman, o foco recai sobre a branquitude enquanto “identidade racial e como tal produtora e reprodutora de desigualdades e hierarquias raciais”, independentemente das intenções individuais. Assim, o campo desloca a lente do racismo como fenômeno de atos isolados para uma análise estrutural que revela como a identidade branca foi historicamente construída como norma e universalidade.

Em outras palavras, a branquitude não é apenas uma condição de ser; é um sistema de significados que opera silenciosamente, consolidando posições de privilégio e naturalizando hierarquias raciais.


Desempacotando a Branquitude

Conceitos-Chave para a análise crítica para avançar na compreensão da Branquitude, alguns conceitos fundamentais precisam ser destacados:


Normatividade e Invisibilidade

A branquitude funciona como o “ponto zero” da identidade racial — aquilo que, por ser hegemônico, se apresenta como neutro e não marcado. Pessoas brancas, muitas vezes, não se percebem como racializadas, reforçando a ilusão de que apenas "os outros" possuem raça. Richard Dyer argumenta que a branquitude “assegura sua dominação por meio de sua invisibilidade [...] se apresenta como a condição humana normal”. Essa invisibilidade é um dos principais mecanismos de reprodução da normatividade branca: o que é invisível torna-se incontestável.


Privilégios Raciais

Peggy McIntosh popularizou a noção de "mochila invisível" de privilégios: um conjunto de vantagens e acessos que a maioria das pessoas brancas carrega inconscientemente. Pense, por exemplo, na simples ação de entrar em uma loja sem ser seguido por seguranças ou na facilidade de encontrar produtos estéticos (como maquiagem ou curativos) que correspondam ao seu tom de pele. São pequenas e grandes vantagens que decorrem não do mérito individual, mas da posição ocupada na hierarquia racial. Reconhecer esses privilégios não é motivo de culpa, mas sim um passo necessário para entender as desigualdades estruturais e para agir pela redistribuição efetiva de recursos e oportunidades.


Pacto Narcísico da Branquitude

Desenvolvido por Cida Bento, o conceito do "pacto narcísico" refere-se ao acordo tácito entre pessoas brancas para proteger seus privilégios e preservar uma autoimagem positiva, frequentemente através da negação ou minimização do racismo. Como define a autora, é “um pacto [...] de manutenção de privilégios para um grupo específico: os brancos”, operando frequentemente de forma não consciente para preservar o status quo racial. Esse pacto dificulta a responsabilização e perpetua a manutenção das desigualdades.


Raízes Intelectuais: A Construção do Campo Crítico da Branquitude

O campo dos Estudos Críticos da Branquitude emerge a partir de diversas tradições teóricas:

W.E.B. Du Bois, já no início do século XX, apontava para os “salários públicos e psicológicos” da branquitude nos Estados Unidos — um tipo de recompensa simbólica que reforçava a adesão de trabalhadores brancos pobres a estruturas racistas, sentindo-se superiores aos negros.


Ruth Frankenberg, em White Women, Race Matters, explora como mulheres brancas constroem suas identidades a partir de relações de poder racializadas, mostrando que a branquitude "é um local de vantagem estrutural, de privilégio racial".


David Roediger, em The Wages of Whiteness, analisa como a classe trabalhadora branca norte-americana construiu sua identidade a partir da exclusão racial.

Richard Dyer investiga o papel cultural e representacional da branquitude no Ocidente, desvendando sua aparente neutralidade.


No Brasil, além de Cida Bento, temos contribuições inestimáveis de:

Lia Vainer Schucman, que revela as hierarquias internas da branquitude paulistana, mostrando que ela "não é monolítica, mas um espectro de privilégios".


Lourenço Cardoso, cuja obra analisa a branquitude no contexto jurídico e no racismo institucional brasileiro.


Esses estudos são indispensáveis para compreender a branquitude em um país que construiu uma narrativa mítica de "democracia racial" para encobrir suas profundas desigualdades.


Por que analisar a Branquitude é essencial para a Luta Antirracista?

A crítica à branquitude não é um exercício teórico desconectado da prática política. Pelo contrário, ela se mostra imprescindível em vários níveis:


Visibilizar o Polo Dominante

Ao focar apenas nas vítimas do racismo, corre-se o risco de invisibilizar o sujeito privilegiado. A análise da branquitude torna evidente que o racismo é um sistema ativo de manutenção de privilégios, e não apenas de opressões.



Superar a Armadilha da Intenção

A luta antirracista precisa transcender a análise das intenções individuais (se alguém “quer ser racista” ou “não é racista”) e focar nas consequências e estruturas. A crítica à branquitude convoca a responsabilidade estrutural e coletiva.


Construir Alianças Antirracistas Conscientes

Pessoas brancas, para serem aliadas efetivas, precisam reconhecer seus lugares de fala e poder, ouvir vozes negras e indígenas, e agir de maneira consciente para não reproduzir protagonismos indevidos ou dinâmicas tutelares. Como nos lembra Grada Kilomba (embora focando na experiência negra, a reflexão serve à aliança), é preciso descolonizar o olhar e a escuta.


Desnaturalizar a Eurocentricidade

A crítica à branquitude permite desafiar padrões eurocêntricos de estética, conhecimento e comportamento, abrindo espaço para uma sociedade que valorize, de fato, a pluralidade de epistemologias e culturas.


Conclusão: Um Chamado ao Compromisso Transformador

Discutir branquitude crítica é, antes de tudo, um convite para repensar as fundações invisíveis que sustentam o racismo estrutural. Trata-se de um trabalho contínuo, desconfortável e profundamente necessário. Não se exige culpa, mas sim compromisso ético e responsabilidade histórica.

Que este ensaio funcione como um ponto de partida para aprofundamentos teóricos, leituras críticas e, sobretudo, para a ação prática em prol de uma sociedade antirracista. O antirracismo efetivo exige que se questione não apenas as estruturas de exclusão, mas também os mecanismos de privilégio.


Leituras, reflexões, críticas? O espaço dos comentários abaixo está aberto para um debate respeitoso e construtivo. 👇


Referências Sugeridas:

BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Raça, Hierarquia e Poder na Construção da Branquitude Paulistana. São Paulo: Annablume, 2014.1

CARDOSO, Lourenço. O Branco Ante a Lei: Legislação e Racismo Institucional. Salvador: EDUFBA, 2018.

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

Dyer, Richard. White. Londres: Routledge, 1997.

Frankenberg, Ruth. White Women, Race Matters. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

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