top of page

Os desafios para a consolidação de um Estado antirracista

A trajetória do negro na história do Brasil pós-abolição é marcada por vários desafios e reveses. O processo de invisibilização, marginalização e discriminação marcam a estratégia de uma iniciativa elaborada e assumida institucionamente a partir de 1911, quando ocorre a Conferência Mundial das Raças. A delegação brasileira presente neste espaço apresenta uma tese com base no darwinismo, onde o objetivo era extinguir o negro do Brasil em um século. Logo, a proposta era que, em 2011 a população brasileira fosse totalmente branca, ou assumidamente eurodescendente. Não nos causa espanto quando muitos se autodeclaram descendentes de italiano, alemães e etc. De outro lado, a impossibilidade de estabelecer esta ligação a uma nação originária, lançando mão de identificar-se afrodescendente, levando a compreensão de que a África é um único país. Este fato se deve a uma das várias investida do Estado de apagamento da história do negro no Brasil. Por determinação do então Senador da recente República Federativa do Brasil, Rui Barbosa e outros pares com igual entendimento, foi queimada toda a documentação referente ao tráfico negreiro e a entrada dos negros e negras em condição de escravizados no Brasil. Desde o local de embarque, no continente africano, passado pelos embates e revoltas durante as viagens, leia-se as mortes e violações, até o desembarque e destino em toda extensão territorial no Brasil. As comercializações (quem, quantos, como também onde), foram incineradas, com o intuito de desresponsabilizar a elite emergente daquela ocasião, já presente ou se fazendo valer dos privilégios que o Estado poderia lhe garantir.

Anos a frente, este mesmo Estado, seguindo a orientação eugenista, legisla pela proibição do negro ao direito de propriedade de terra, ao acesso as escolas, como também, simbolicamente ao exercício de sua arte cultura, levando-os a condição de delinquentes e vadios. Condição perfeita, no período republicano, para a manutenção no negro em regime prisional, sob a tutela do Estado e em condições de submissão aos demais migrantes euro-asiático que ora chegavam dos seus continentes e nações, com subsídio e garantia do Estado brasileiro. A estes foram garantidos residência, trabalho, organização sindical, religiosa, e sociocultural. Não por acaso a luta sindical tem como marco a luta dos comunista italianos que chegaram ao Brasil e não as resistências dos trabalhadores escravizados contra as tiranias dos proprietários de terra e contando com a anuência do Estado. A literatura religiosa ignora as irmandades do povo preto, que obrigatoriamente cediam-se ao sincretismo para minimamente professar sua religiosidade. Tal como as organizações sociais do povo negro na arte e cultura, conhecimento e trabalho de modo geral é pouco falada, inviabilizando individual ou coletivamente as diversidades e experiências. As narrativas criadas a partir da teoria do branqueamento, propicia a construção da tese da democracia racial, amplamente subsidiada e difundida pelo Estado como estratégia de amenizar os ânimos e minimizar as revoltas negras no cenário brasileiro. A figura do homem cordial, na literatura de Gilberto Freyre serve ao Estado como uma anedota, que do lado da população negra, os condiciona a servidão satisfatória, preanunciando a meritocracia; do lado contrário garante a satirização daqueles que os serviram em condições involutas e sem orgulho de sua história, a população negra.

O espectro da democracia racial, desde a sua idealização e aplicação sempre serviu ao propósito da manutenção do status quo do Estado e sua classe dirigente. O período de maior difusão dessa ideia, foi durante a ditadura cívico-militar de 1964-85, quando a elite empresarial nacional, juntamente com parte dos militares das forças armadas, temendo as ações dos progressistas na figura de João Goulart, assumem e efetivam o golpe de 1964, que se estendeu até 1985. Estes 21 anos do regime autoritário, mais uma vez evidencia a dinâmica do Estado brasileiro de silenciar e inviabilizar os movimentos sociais, dentre eles os que atuavam na frente antirracista. Ao assumir e potencializar o discurso da democracia racial, a elite empresarial brasileira em conluio com parte das forças armadas assume sua fase racista, covarde e golpista, diante da possibilidade de ter que, com o curso da história, abrir mão de seus privilégios cativos desde a instalação da república. Para a elite empresarial e seus capangas subsidiados na estrutura do Estado brasileiro, não bastava seu potencial econômico, eram necessários aniquilar toda e qualquer ameaça, mesmo diante da dinâmica da modernidade tardia, que traz em si a pluralidade cultural e a diversidade como marco do desenvolvimento. O medo da inovação explicita o conservadorismo golpista deste segmento. Mesmo diante da repressão, do cerceamento, censura e acirramento da violência com o aval do Estado, militantes e intelectuais negros e negras diversificam suas ações com o intuito de manter ativa sua trajetória de luta pelo ideal de uma sociedade antirracista e agora, também democrática. Jornais, boletins e pasquim; teatro, danças e músicas serviram como espaço de denúncias das arbitrariedades ao conjunto da sociedade, como também anúncio de solidariedade e ajuda mútua aos pares.

Ao longo de todo o século passado, a população negra sempre foi pautada pelos operadores do Estado como agentes não reflexivos, e dessa forma incapaz de dirigir e contar sua própria história. Esta dinâmica impôs uma narrativa ao conjunto da sociedade, e até mesmo entre a população negra, de que o negro e a negra além de, não ter uma história de resistência, servia única e exclusivamente aos trabalhos serviçais ou, quando muito, as interpretações humorística e de sátiras. Esta narrativa começa a se alterar, ainda que de forma muito tímida e aquém da realidade almejada a partir das leis contra a prática do racismo. A primeira em 1951, Lei 1391, nomeada Afonso Arino, cuja a motivação para elaborar veio depois de um caso de discriminação envolvendo a bailarina afro-americana Katherine Dunham que foi impedida, em razão da sua cor, de se hospedar em um hotel em São Paulo. O caso não teve tanta notoriedade no Brasil, mas repercutiu negativamente no exterior. Na sequência, esta lei tem uma nova versão e recebe o nome de Lei CAÓ (Lei 7.437/85), já no início da redemocratização, de autoria do Deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira, advogado, jornalista, militante do movimento negro. Em 1989, a lei tem uma nova versão que, a partir de então, passa a determina pena de reclusão a quem tenha cometidos atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, a fim de atender a nova Constituição Federal que torna inafiançável e imprescritível o crime de racismo. Já em 2023, a lei tem mais uma versão, a qual equipa um dispositivo que isentava o autor do ato de racismo a penalidade. A lei 14.532/2023 passa a equipara a injúria ao crime de racismo ao longo de muitos debate de disputa de narrativas dos movimentos negros e os operadores do Estado.

Foram 73 anos desde a Lei Afonso Arino até a equiparação da injúria ao crime de racismo, aos 135 anos da abolição. Uma evidência marcante de que a proposta de abolição da população negra no Estado brasileiro segue em disputa. O que para a elite, o 13 de maio é considerado o dia da abolição e por longo tempo, o dia da consciência negra; para os negros e negras este é um dia de reflexão e denúncia permanente contra o racismo e a falsa narrativa. A narrativa da abolição defendida pela elite dirigente do Estado não deu conta do processo de emancipação da população negra. O que somente se dará com a plena reparação histórica e o fim do genocídio da população negra. Esta reparação segue em curso, ainda que com passos aquém do necessário. Em uma recente pesquisa de levantamento de documentos oficiais de legislações e de autoria dos executivos municipais das cidades brasileiras que aderiram recentemente ao Pacto das cidades antirracistas, percebemos uma enorme deficiência na proposta de institucionalização das políticas antirracista, sinalizando que o Estado e a sociedade como um todo, ainda vive o reflexo de uma disputa de narrativa e refém de uma abolição inacabada. A pesquisa teve como foco mapear as legislações em âmbito municipal que versão sobre a promoção da igualdade racial e por meio de raspagem nas páginas eletrônicas, como também nos portais oficiais das prefeituras e casas legislativas das cidades signatárias do Pacto das Cidades Antirracistas, captar os documentos legislativos ou de uso do poder executivo que regulam e institucionalizam as políticas de promoção da igualdade racial. Para além das leis, decretos, atas e outros documentos que instituem os organismos, buscou-se aqueles que referenciam as diversas outras políticas antirracistas em cada uma das 27 cidades signatárias. A pesquisa identificou cidades com uma política antirracista avançada, e por outro lado, uma dificuldade em boa parte das cidades até mesmo em depositar suas legislações em ambiente virtual acessível aos interessados. Um outro ponto que merece destaque é que a institucionalização e implementação das políticas se deram em determinado período de tempo, em meio a uma gestão específica, o que compromete o desenvolvimento e o aprofundamento das pautas no referido contexto.

O Pacto é uma iniciativa da Coordenadoria Executiva de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura do Rio (CEPIR) e foi lançado na Reunião de Cúpula das Cidades das Américas, em Denver, nos Estados Unidos. Conta com 27 cidades brasileiras e 21 cidades internacionais de 10 países das Américas do Latina e no Norte. A proposta que, segundo idealizadores, visa inovar em políticas públicas de promoção da igualdade racial para beneficiar a população negra, indígena, quilombola, cigana e tradicional de matriz africana, assim como refugiados, imigrantes e demais grupos étnicos minorizados, vulneráveis socialmente tem pela frente desafios que vai desde a inclusão dessa parcela da sociedade até mesmo a transparência na gestão pública. Considerando os organismos, é preocupante que mesmo sendo signatária deste Pacto, há cidades que não dispõe de uma órgão PIR em sua estrutura do poder executivo, o que dirá em sua Casa legislativa, como uma comissão de igualdade racial. Das cidades que dispõem de um órgão PIR em sua estrutura do executivo municipal, a instabilidade e falta de apoio político e financeiro, compromete os trabalhos dos agentes e retorno para a sociedade é a caracterização de uma gestão que não tem compromisso com a gestão das políticas antirracista na cidade. Esta falta de apoio financeiro se deve ao fato da pasta não ter uma dotação própria ou mesmo não ser incluída no PPA da cidade. Uma outra questão fundamental é a vinculação do órgão que geralmente é submetida a secretaria de ação social e não dispõe de autonomia política para desenvolver suas atividades de forma transversal. A interlocução desse órgão PIR com a sociedade, geralmente é feito por meio dos conselhos municipais de promoção da Igualdade racial, que em muitas cidades ou não tem regularidade em suas reuniões ou seus processos de eleição dos conselheiros não são amplamente divulgados de maneira que limita a participação da sociedade civil. Ademais, entre os organismos e instrumentos de institucionalização, gerenciamento e fomento às políticas de promoção da igualdade racial, encontramos ouvidorias, observatórios, cotas em concursos públicos municipais, datas reflexivas nos calendários oficiais, dentre outras ausentes na maioria dos municípios que, certamente podem contribuir para uma cidade antirracista.

A cidade do Rio de Janeiro, idealizadora do Pacto, foi umas das primeira a dispor de uma legislação municipal para a fomentar e institucionalizar as políticas antirracista. Já em 1988, foi constituído o conselho municipal de direito do negro, cria o museu do negro e institui o dia 22 de novembro como dia do Almirante Negro. Esta última revogada por uma ação de inconstitucionalidade. Outras três leis que tangem a questão racial tiveram impetrada ação de inconstitucionalidade, dentre as quais, a última foi lei municipal que determina a reserva de vagas em concurso público para negros e índios. O que revela a existência de uma força conservadora impedindo a realização de uma cidade antirracista. Os desafios para a consolidação de um Estado Antirracista está lançado!

Posts Relacionados

Ver tudo

CURSO: HISTÓRIA E CULTURA DE ÁFRICA

CURSO: HISTÓRIA E CULTURA DE ÁFRICA “De Século IV ac. ao XX” 07 de Março a 11 de Julho 2019. O Curso HISTÓRIA E CULTURA DE ÁFRICA “De Século IV ac. ao XX” tem como objetivo a promoção do conhecimento

bottom of page