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A Pedagogia do Silêncio e a Escrita como Legítima Defesa: Reflexões Radicais para o 25 de Novembro

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Por Helbson de Ávila

Hoje, 25 de novembro, o calendário internacional convoca o mundo a marcar o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. A data, instituída em memória das irmãs Mirabal — brutalmente assassinadas pela ditadura de Trujillo na República Dominicana —, não é apenas um marco de luto; é um lembrete de que a violência de gênero é, em sua gênese, violência política. Ela atravessa corpos, lares, instituições e imaginários com a permissividade de quem estrutura a própria ordem social.


Mas, aqui na Livraria Pandora, propomos um deslocamento analítico. Queremos ir além da gramática viciada da denúncia criminal para interrogar aquilo que antecede o golpe físico, que pavimenta o caminho para o feminicídio e que sustenta a impunidade: o silêncio.


A violência de gênero não é uma anomalia do sistema; ela é uma linguagem do sistema. Antes de se manifestar na carne como hematoma, ela se inscreve no discurso como norma. Antes de ser um ato, é um enunciado. Antes de ser crime, é uma pedagogia cultural de dominação.


1. A Arquitetura do Silêncio: Violência Simbólica e Linguagem

Para compreender a violência, precisamos dissecá-la para além do óbvio. Como nos alerta a antropóloga Rita Segato, a violência contra a mulher não é apenas instrumental (para submeter a vítima), mas expressiva: ela é uma mensagem que o agressor envia aos seus pares para reafirmar sua masculinidade e posse. É o que Segato chama de "mandato de masculinidade".


Nesse teatro de horror, o patriarcado opera através de um adestramento subjetivo sutil e constante. Bell Hooks nos ensina que essa estrutura exige a mudez das mulheres como prova de feminilidade. O patriarcado não se sustenta apenas pelo controle bélico dos corpos, mas pela domesticação da linguagem. Ensina-se, desde cedo, que a voz da mulher é "estridente", "histérica", "inadequada" ou "perigosa".


O silêncio, nesse sentido, não é um vazio; é uma imposição política densa. É aquilo que Pierre Bourdieu definiu como violência simbólica: uma coerção que se exerce com a cumplicidade tácita de quem a sofre e de quem a aplica, porque está inscrita nas estruturas cognitivas, na linguagem e nas instituições. O silêncio é a parede invisível que transforma a violência doméstica em "assunto privado", blindando o agressor da justiça pública.


2. A Literatura como Desobediência Epistêmica

É diante dessa arquitetura de emudecimento que a literatura emerge não como "lazer" ou "fuga", mas como uma tecnologia de defesa e reconstrução subjetiva. Ler mulheres — sobretudo mulheres negras, indígenas, lésbicas e periféricas — é um ato de desobediência epistêmica. É recusar a narrativa única do colonizador e do patriarca.


Ler Conceição Evaristo é aprender que a memória não é propriedade dos vencedores. Ao cunhar o conceito de escrevivência, Evaristo borra as fronteiras entre a vida vivida e a vida narrada, permitindo que a mulher negra deixe de ser objeto de estudo sociológico para se tornar sujeito da própria história.


Ler Audre Lorde é compreender a dimensão política do afeto. Lorde nos ensina que o "erótico" não é pornografia, mas uma fonte de poder e conhecimento que o patriarcado tentou suprimir. Ela nos arma com a certeza de que "as ferramentas do mestre nunca derrubarão a casa do mestre" e que o silêncio não nos protegerá, pois fomos ensinadas a temer a nossa própria voz mais do que a opressão.


Ler Lélia Gonzalez é desvendar a neurose cultural brasileira. Lélia expôs como o racismo e o sexismo se entrelaçam para apagar a figura da mãe preta, reduzindo a mulher negra aos estereótipos da "mulata" (para o sexo) ou da "mucama" (para o serviço), negando-lhe a humanidade integral.


Ler Judith Butler é desnaturalizar o destino. É entender que o gênero é uma performance regulada por normas violentas, e que a vida "vivível" depende do reconhecimento do outro.


Ao ler essas autoras, a dor deixa de ser um delírio solitário para se tornar uma evidência estrutural. O ato de nomear a opressão é, como lembra a própria Lorde, o começo irrevogável de qualquer libertação.


3. Nomear para Existir: Quebrando as Imagens de Controle

A literatura cria fissuras no muro da dominação. Ela desmonta o que a socióloga Patricia Hill Collins chama de "imagens de controle": os estereótipos (a "mammy", a "jezebel", a "matriarca raivosa") criados para justificar a exploração das mulheres negras.


Quando uma mulher lê, ela acessa espelhos possíveis onde a submissão não é a única rota. Ela descobre mundos onde a resistência é rotina e onde o amor — muitas vezes negado às mulheres negras pela solidão sistêmica — é reivindicado como um direito político fundamental. A leitura reconfigura o imaginário, permitindo que a mulher se veja fora do lugar de "vítima" e se reconheça no lugar de "sujeito".


4. Novembro: Luta, Letramento e a Economia da Violência

Por isso, neste 25 de Novembro, nosso chamado na Livraria Pandora não é apenas para a indignação moral, mas para o letramento político. Nenhuma violência existe isolada. O soco na mesa de jantar está conectado à economia do cuidado que explora o trabalho não pago das mulheres; está ligado à precarização da vida que impede a autonomia financeira; está atado à necropolítica que mata os filhos das mulheres negras nas favelas.


A violência de gênero é a infraestrutura que mantém o status quo. E estruturas só se desestabilizam quando são entendidas, dissecadas, nomeadas e enfrentadas coletivamente. O feminismo não é apenas sobre mulheres; é sobre propor um outro modelo civilizatório.


Conclusão: Quebrar o Silêncio como Projeto de Nação

Que nossos livros funcionem como ferramentas de coragem e manuais de legítima defesa intelectual.


Que nossas leituras interrompam a pedagogia da crueldade e da mudez.

Que cada página virada seja, simbolicamente, um tijolo retirado do muro que protege os agressores.

A literatura é o ensaio da revolução possível. Porque, como escreveu Audre Lorde — e como devemos repetir até que se torne nossa segunda pele —:

“O seu silêncio não vai te proteger.”

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