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Agosto Negro: falar sobre saúde da população negra é falar sobre Justiça


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Agosto Negro, um mês de denúncia e afirmação

O mês de agosto carrega, em muitas partes do mundo, um significado de resistência e memória negra. Inspirado pelas lutas da diáspora africana — como as rebeliões de escravizados nas Américas e o legado de líderes como Marcus Garvey e George Jackson — o Agosto Negro é uma convocação à ação política e simbólica. No Brasil, este mês pode ser reinterpretado como um espaço para visibilizar e enfrentar as violências que atravessam a vida da população negra, inclusive em dimensões menos visíveis, como a saúde.


Neste ano, a Livraria Pandora dedica o Agosto Negro à promoção de debates e reflexões sobre saúde e justiça racial. Aproveitamos o Dia Nacional da Saúde (5 de agosto), tradicionalmente associado ao sanitarista Oswaldo Cruz, para fazer um deslocamento epistemológico: e se pensássemos a saúde a partir das vivências e resistências negras? E se falar de saúde significasse, antes de tudo, reconhecer as feridas abertas pelo racismo estrutural? Essa perspectiva nos leva a entender que o direito à saúde plena não se limita ao acesso a serviços médicos, mas está intrinsecamente ligado à superação das opressões raciais que moldam as experiências de adoecimento e cura.


O Racismo como fator de adoecimento: Uma perspectiva da saúde coletiva

Longe de ser uma abstração, o racismo é um determinante social da saúde. Ele se infiltra nas estruturas, nas instituições e nas relações cotidianas, produzindo sofrimento e, muitas vezes, morte. A saúde da população negra está marcada por uma condição crônica de exclusão. A esse respeito, o Ministério da Saúde do Brasil reconheceu, na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) de 2009, que o racismo, a discriminação racial e as iniquidades em saúde são desafios que precisam ser enfrentados. A sobrecarga de estresse, a exaustão, a hipervigilância e a vigilância policial são fatores que, como apontam estudos em saúde coletiva, estão associados a doenças cardiovasculares, hipertensão e transtornos psíquicos.


A psicóloga e militante Neusa Santos Souza, em seu clássico Tornar-se Negro (1983), já alertava que o processo de subjetivação do negro no Brasil é atravessado por um constante sentimento de inadequação e violência simbólica. O corpo negro adoece ao ser permanentemente visto como ameaça, inferior ou descartável. A esse respeito, Frantz Fanon, psiquiatra martinicano, afirmava que “para o negro, não basta ser corpo: ele precisa justificar sua existência diante de um mundo branco que o nega” (Pele Negra, Máscaras Brancas, 1952). Fanon nos ensinou que o sofrimento psíquico do negro é, fundamentalmente, uma reação a uma estrutura social que o desumaniza.


Desigualdades no acesso e cuidado: O Racismo Institucional em ação

O racismo institucional no sistema de saúde brasileiro aprofunda essas desigualdades. Segundo dados do Ministério da Saúde, mulheres negras têm quase três vezes mais chances de morrer no parto do que mulheres brancas. Esses dados, provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde, evidenciam a negligência e a falta de cuidado adequado. Quando acessam unidades de emergência, pessoas negras são mais frequentemente negligenciadas, recebem menos analgesia e têm menos chances de encaminhamento a procedimentos especializados, uma realidade documentada por diversas pesquisas sobre a qualidade do atendimento e o viés racial na medicina.


A anemia falciforme, doença genética que atinge majoritariamente pessoas negras, é um dos símbolos dessa negligência. Embora seja a doença hereditária mais comum no Brasil e com alta prevalência na população afro-brasileira, ela ainda enfrenta diagnósticos tardios, falta de acesso a medicamentos adequados e escassez de campanhas de conscientização. Esse apagamento revela uma epistemologia branca da saúde, que normatiza o corpo branco como medida universal e silencia as especificidades das corporeidades negras, uma crítica que autores como o médico e sociólogo sanitarista Sérgio Arouca já faziam ao modelo biomédico tradicional, que falhava em reconhecer as dimensões sociais e raciais da saúde.


Saúde Mental como território de luta: descolonizando o cuidado

A saúde mental, por sua vez, torna-se um dos campos mais sensíveis da luta antirracista. Fanon, que atuou como psiquiatra na Argélia colonizada pela França, denunciou que o sofrimento psíquico do negro não pode ser entendido fora da experiência colonial e do racismo. O que ele chamou de “alienação do negro” é, na verdade, um trauma político, coletivo e histórico, que exige uma abordagem terapêutica que reconheça essa dimensão.


Neusa Santos Souza, ao descrever a “negritude recusada” nas estruturas de subjetivação, antecipava os debates contemporâneos sobre saúde mental e branquitude. A ausência de terapeutas negros, o despreparo dos profissionais de saúde mental para lidar com a questão racial e a patologização da resistência negra são formas sutis de violência institucional. Essas questões são discutidas por teóricos como Jurema Werneck e Maria Aparecida Bento, que defendem a necessidade de uma psicologia e uma psiquiatria antirracistas.


Assim, práticas de cuidado precisam ser descolonizadas. Isso significa criar espaços de escuta onde a experiência racial seja reconhecida, valorizada e compreendida como constitutiva do sujeito. Significa também fortalecer redes de cuidado coletivo nos territórios periféricos e fomentar saberes afrocentrados sobre saúde e cura, valorizando a medicina tradicional e a sabedoria ancestral.


Saúde como Justiça e Resistência

Falar sobre a saúde da população negra é, acima de tudo, falar sobre justiça. Não há bem-estar possível sem o enfrentamento do racismo estrutural que adoece e mata cotidianamente. O corpo negro resiste, mas não pode mais resistir sozinho. O Agosto Negro da Livraria Pandora é um chamado à escuta, ao aprendizado e à ação. Porque, como ensinou bell hooks, “a cura é um ato de libertação”. E toda luta antirracista é também, necessariamente, uma luta pela vida.


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